domingo, 3 de fevereiro de 2013

apenas uma fábula


Ainda não existiam borboletas no estômago ou capas de chuva amarelas, mas eu já o via em meus sonhos. Não entendia como é que alguém tão distante poderia vir acompanhado de tão ternas sensações. Um ponto forte de intriga, até um dia transformar-se em realidade. 

Algo que colori aos poucos, na medida em que idealizava os olhos de uva, os dedos largos e o carinho interminável. Pintei um belo quadro em tela rara e muitas vezes me orgulhei do feito. 

No entanto, quem nos sonhos trazia a novidade, ocupou-se também de revelar o que era, de fato, vida real. E isso não cabia ali. Essa vida, também volátil, converteu-se num ríspido movimento. Não acompanhei seus passos. As sensações foram da paz ao medo em poucas febres tresnoitadas.

Em gris, padeci com o vazio da cena ilustrada. Carreguei dor no peito, garganta seca, falta de ar e desamor. O quadro das cores inéditas foi desfeito em meio a uma tempestade com nuance mortal. 

Minha capa de chuva é azul. Um dia o sol renasce e eu também.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

a semana


comi chocolate,
não deveria.
 
cabeça cansada
cansa mais que o corpo
 - todo dia.

estou com saudade e
uma ponta de tristeza,
por gente diferente:
uma que volta, outra não.

alguma expectativa para quinta-feira.
semana lenta.
outro mês chega menos ainda.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

sobre o que ocorre com frequência



Ainda estamos debaixo das cobertas quando as sinapses nervosas ativam as primeiras imagens do dia. A vida ensaia seus passos no corpo, segundos antes nas mitocôndrias, mas não notamos de imediato que está próximo do amanhecer. Ignoramos a sensibilidade, que é para dormir um pouco mais.

Acordamos, é tarde. Saltamos da cama sem sequer espreguiçar. Junto com a pasta de dentes que se dissolve na água da pia, mandamos embora os sentimentos que nos foram adiantados ao longo da noite.

O mundo foi previsto em fragmentos coloridos e rajadas de luz. Alguns códigos poderiam ser decifrados se tivéssemos acesso à linguagem das sensações. No entanto, desde muito cedo nos retiraram certas experiências. Há mais o que fazer em vigília!

A mente produz, o corpo responde. Só não nos disseram que as energias são estimulantes. Desejo, paz, raiva, consagração, coincidência, dúvida: do cosmo às células, passa tudo em sonho. Não é explícito, não sabemos que lição tirar. Inferimos apressados que é preciso ignorar. Com o que sonhamos na noite anterior? - perguntamo-nos, em um ato impulsivo de esquecimento.

Melhor, contudo, seria lembrar. Um caderno para anotar. Detalhes, falas, cores e movimentos. Quem sabe não evitaríamos recalques, pedras nos rins e até prisão de ventre?

Interrompemos um processo, tomamos água ao longo da noite. E as imagens voltam, aceleradas, gritando. Há o que se evidenciar. Não se trata de devaneio ou premonição, é uma parte da existência, é o início. A realidade desperta quando a cabeça ainda está no travesseiro. Sejamos atentos!

terça-feira, 2 de outubro de 2012

no limiar


Estamos em circulação. Durante a caminhada, a trilha traz surpresas. Cascalho, mato, lama, água, pasto ou cimento podem estar na sustentação da nossa trajetória. Para cada passo, uma forma de pisar, uma respiração e um olhar. E assim acontecem as experiências.

O percurso revela uma infinidade de caminhantes. Aos poucos, conforme sentimos o chão, pessoas são identificadas, seus rostos ganham feição. Caminhantes lado a lado, ora necessitamos apoio, ora basta um empurrão. Pode ser que não tenhamos o que dar em troca ou que o carinho seja uma boa fonte de energia. Em muitos casos, não se compreende o que tantas vozes dizem. Vez por outra, captamos os sinais com uma leve movimentação de dedos, braços ou quadril. É tudo sutilmente esvoaçante.

No correr do caminho, acontece de as pessoas terem ritmos, velocidades e direções diferentes. Há quem chegue na frente e também quem tropece ou desmaie. Há quem cumpra sua jornada e deixe de vez a longa estrada. Há quem morra ainda em vida, virando logo ali em outra pista.

Também nessa estrada há abismos e planícies. Os abismos, profundos e escuros, nos revelam a crise e a realidade do percurso. As planícies, levemente assombreadas e frescas, nos oferecem oportunidade para respirar, observar, analisar, compreender, pactuar ou discordar. Quando alguém desvia seu rumo do nosso, sofremos e nos sentimos diante do abismo. O caminho em conjunto estava bom e cômodo. A dor é imensa.

Para aproximações ou abandonos, não há explicações plausíveis ou que sequer estejam acessíveis à nossa racionalidade. Aconteceu, o luto está por vir. Lutamos com as dores das transformações e, sem notar, nos posicionamos a um passo da próxima parada: a planície.

É no limiar que ocorre o luto. Velamos os que nos deixam e sentimos muito – por nós e por eles. Os enterramos. Nos despedimos em pensamento. Delírio e realidade se confundem, é quando tentamos recuar. Garantimos os sonhos mais lúdicos, mas padecemos de desilusão ao despertar. Pouco a pouco, desejamos novamente fincar os pés na terra. Quem sabe, voar? Quando seca o choro, gota a gota da lágrima que caiu é transmutada em sinais de tranquilidade. Isso, contudo, é sem adiantamento. Só há modos de esperar.

domingo, 23 de setembro de 2012

o amor segundo Patrícia Galvão



“Toda a vida eu quis dar. Dar até a anulação. Só da dissolução poderia surgir a verdadeira personalidade. Sem determinação de sacrifício. Essa noção desaparecida na voluptuosidade da dádiva integral. Ser possuída ao máximo. Sempre quis isto. Ninguém alcançou a imensidade de minha oferta. E eu nunca pude atingir o máximo do êxtase-aniquilamento: o silêncio das zonas sensitivas.” 


Não havia muito que fazer nos últimos tempos, a não ser dedicar-me com afinco à contemplação. Estava sentada em um banco da Praça da Liberdade, fazendo a sesta de uma segunda-feira distante da rotina. Apenas os pássaros eram meus companheiros para aquela tarde tranquila. O céu estava brilhante e cada folha derrubada da árvore pelo vento era um acontecimento. Buscava algo que me fizesse enternecer. 

Abri um livro recém-adquirido no sebo. Paixão Pagu, autobiografia de Patrícia Galvão. Texto propício para o momento em que encerrava minha “formação feminista”. Tratava-se de uma carta escrita por Pagu a seu último companheiro, Geraldo Ferraz, narrando, com minúcias, o extremo da dedicação ao Partido e todas as consequências disso. Li com os sentidos aguçados, considerando importante ir além da Pagu "exibicionista" ou das poesias "nothing".

À página 52, deparei-me com palavras de sentido. Era justificativa para o vazio que se abre na mesma medida em que crescem os impulsos de afeto e doação. Era consolo para os desejos de abraçar e que, quiçá, nunca serão sanados. Até então não havia explicação para um sentimento similar ao amor. Enterneci. Não era o que me inquietava propriamente, apenas encontrei mais uma vez em Pagu algo de identificação. Sentia, como mulher, por pessoas, causas e situações, o que não sabia dizer. Desde então, fiz minhas suas palavras.

domingo, 9 de setembro de 2012

falar? de que lugar?


"O exercício de furtar o tempo com uma fala mansa e detalhada constituindo uma gestualidade corporal encenada entre pausas, extravios e síncopes, floresce sonoramente as paisagens humanas" - Eguimar Felício e Dênis Castilho em Cerrado: patrimônio genético, cultural e simbólico.