segunda-feira, 26 de outubro de 2009

o caminho daqui, pelas terras de lá




A primeira coisa que fiz hoje quando acordei foi averiguar o resultado das eleições presidenciais no Uruguai, realizadas ontem. Cerca de 2,5 milhões de pessoas escolheram José Mujica, também chamado de Pepe, da Frente Ampla, e Luis Lacalle, do Partido Nacional, para disputarem o segundo turno no dia 29 de novembro. Também foi recomposto o parlamento, com uma espécie de polarização acirrada das cadeiras da Câmara Baixa e do Senado entre esses dois partidos (e suas bases).

Classificado como ex-guerrilheiro, Mujica adotou o slogan: "con mochila o sin mochila, votá en Pepe". A mochila, para o povo uruguaio, é o símbolo do passado armado. O "comunismo" ainda deve assombrar. Ex-presidente dos tempos da abertura ao modelo neoliberal, Lacalle é o famoso "rouba mas faz" de lá. Faz planos de recuperar a economia do país estatizando a pesca, mas não faz muita relação do sistema econômico à crise mundial. Tem um apoio velado de Pedro Bordaberry, filho de ex-militar golpista que, graças aos resquícios da memória, não foi totalmente esquecido. Entre a centro-esquerda e a centro-direita, o país tenta conduzir seu futuro sem grandes expectativas.

E por que havia de me interessar pelas eleições presidenciais do Uruguai? A história é longa, mas me dá gosto em narrar.

Maio de 2001 - A primeira vez que saí do país o fiz com destino a Montevidéu. Uma viagem de faculdade, com um grupo disposto a passar frio e fome. Estudante das quebradas, arrisquei passar uma semana fora de casa com pouco mais de R$ 200,00 (quase uma fortuna!). Três dias no microônibus da UFG para ir, três para voltar. Pisquila dormindo na Serra Gaúcha e minha mãe rezando de Goiânia, para que Santo Expedito protegesse a turma. A poltrona do microônibus era estreita e o resultado foi uma longa dor nas costas. Já em Chuí, passamos uma tarde tentando resolver dois problemas: a entrada no país vizinho do Cleyton e da Renata, que esqueceram seus documentos em casa, e o aluguel do carro que nos levaria até a capital uruguaia. Com previsão de gastar no máximo três horas entre Chuí e Montevidéu, levamos quase 12h e o resultado foi uma noite pesada de sono no Hotel Colônia. Nunca me esqueci do nome desse hotel, que tinha piso de ladrilho verde escuro e branco e elevador com porta sanfonada de ferro.

A primeira vez em Montevidéu me pareceu deslumbrante. Aprendi logo a andar na avenida 18 de Julho e aprendi também que essa data era cívica para seus moradores. Conheci a Universidade Católica e alguma coisa da Universidade da República. Admirei a Cidade Velha, com sua arquitetura gótica, seus prédios com ar abandonado e suas feiras livres cheias de artesanato e artistas de rua. Um dia, procurando o Banco do Brasil, olhei para o alto de um prédio azul marinho e pensei: como será viver por aqui? Curiosidade que foi acirrada com o tempo e que me fez repórter. Todas as vezes que rodei pelo interior do Brasil ou pelos bairros de Goiânia, repeti a mesma pergunta.

Bastante perdida, lembro da caminhada na tarde fria pelo centro de Montevidéu, dos velhinhos que sentavam-se nas portas das casas no final da tarde e da assustadora Igreja Universal do Reino de Deus. "Até por aqui?". Lembro também que, na semana em que o Brasil oficializou o racionamento de energia chamado Apagão, aprendi a tomar água mineral com gás, pois a água mineral sem gás uruguaia era bastante salgada. Não cheguei a ir ao Porto, mas fui a uma boate que tocava P.O.Box "en español". Conheci meninas bastante imponentes - que nunca me esqueço - e rapazes de olhares bastante penetrantes - que também nunca me esqueço. Aqueles cabelos desgrenhados dos jovens e aqueles colares de pérolas das senhoras me atraíam muito: exemplo de charme pseudo-europeu que por muitos anos foi fixo na minha mente.

Apanhei para conversar. Não sabia nada de espanhol e, por isso, entendia nada além de "Sí, como nó?". E, ao dirigir a palavra a qualquer um, não sabia se arriscava o portunhol ou falava meu brazuca devagar. E morri de vergonha. Tanto, que a primeira medida tomada ao voltar para Goiânia foi efetivar a matrícula no Senac, nas classes de espanhol do professor... como era mesmo o nome dele? Aquele? Era um chileno de Valparaíso. Ah, não me lembro!

Depois da decisão de estudar espanhol, quem mais me influenciou foi a Andréa, que conheci um ano depois e se tornou minha amiga e professora particular. Argentina de Buenos Aires, me fez estudar muito mais do que o idioma: de Borges a Tomás Eloy Martínez, de Mario Benedetti a Velázquez, de Gabriel García Marquez a Saint-Exuperry ("en español"), de Valentina (sua sobrinha de seis anos que morava em La Plata e vinha a Goiânia vez ou outra) às quatro amigas novaiorquinas do Sex And The City (assistidas com dublagem e legenda em castelhano), do livrinho adolescente que falava de Santiago del Estero à densidade de Júlio Cortázar. Cinco anos intensivos de espanhol com a Andréa me renderam muito mais do que o sonho de um dia voltar ao Uruguai com a língua tinindo: me renderam o certificado pela embaixada da espanha (chamado de DELE) de que estaria apta a "hablar" e uma aventura real pelo Norte e pelo Centro-Sul da Argentina, pelo Aconcágua, pelo litoral do Chile, por parte dos Andes e pelos altiplanos da Bolívia, nos anos de 2007 e 2008.

Desde a primeira vez no Uruguai, descobri semelhanças entre os "gáuchos", os portenhos (que não são só argentinos) e os brasileiros (de todas as partes), principalmente no que é referente à história sócio-econômica e política dos dois países, que por muito tempo povoaram minhas comparações: febre aftosa em boa parte do rebanho para exportação, celeiro do mundo, neoliberalismo dolarizante, falsa-riqueza e falso-progresso nos anos 60 e 70, miséria dos 80 em diante, narcotráfico, prostituição infantil, gente saindo do país para trabalhar, campos de golfe e quadras de tênis nas áreas nobres das cidades, gente morando na rua porque não teve outra opção, educação popular, politização vinda do campo, Paulo Freire, Mario Kaplun.

Logo depois dessa viagem veio a notícia do Corralito na Argentina e a crise que arrancou também as esperanças uruguaias. A quebradeira de um vizinho respingou no outro, mas a esperança de se reconstituírem levou a consolidação de vários movimentos populares e também dois presidentes de esquerda ao poder: Nestor Kirshner e Tabaré Vázquez. Por aqui, as duas eleições de Lula seguiram o rumor esquerdista do continente, mas resultaram muito mais de um "processo" do que de uma reação.

Outubro de 2009 - Quanta coisa muda em 8 anos! O Hotel Colônia fica na Rua Colônia, mas estava tão escondido por detrás de uma porta de vidro que demorei a notá-lo. A avenida 18 de julho, que nos leva do mar até a saída do centro da cidade, é uma espécie de Anhanguera duas vezes maior e com duas vezes menos bancas de camelô (ou será que é o contrário?). Os prédios góticos da Cidade Velha foram revitalizados e algumas ruínas até refeitas, incorporando também os vidros e a modernidade do novo Palácio do Governo. Raquel, que trabalha em um projeto de saúde da família ligado à Universidade, lembra de como, alguns anos atrás, essa Cidade Velha era sinônimo de isolamento e perigo. Hoje, há restaurantes, livrarias, albuergues da juventude e gente caminhando apressada pelas ruas até tarde da noite.

Meu olhar também mudou. Os cabelos desgrenhados das moças eram os mesmos, mas dessa vez elas pareciam ter mais cor. Algo mais de Almodóvar, com bolsas azuis, botas vermelhas e tintas roxas nos olhos. A casa do bispo Edir Macedo não me pareceu tão funesta. E reconheci nas batucadas do Candombe o sangue negro que esse povo quer tanto recuperar. "Não somos só descendentes de europeus", me disse uma mulher na praça do Cine Plaza. A única coisa que não mudou foi minha admiração pelo olhar penetrante dos rapazes. Um deles, o Gonzalo, com um verde profundo, deveria olhar para todo mundo que chega a essa altura do texto. Desperta paixão! Batata que desperta!

A Montevidéu de 2001 me parecia mais charmosa. A de 2009, mais suja, nem tão bonita assim, só que muito mais real. O encantamento mudou e a forma de perceber as experiências também. Dessa vez, fui com duas amigas (e colegas de trabalho e companheiras de projetos) participar de um encontro iberoamericano de extensão universitária. Em uma semana de contato com pesquisadores e movimentos sociais de toda a América Latina, o encantamento ficou a cargo nem tanto das formas e das construções, mas mais pelas sincronicidades, pelos discursos, pelo que se estuda, pelas pessoas, pelo entusiasmo de saber que há chances de se fazer pesquisa "desde las prácticas sociales", pelo Juan Bordenave e pelo William Torres.

A fluência no espanhol ainda não está boa. Muitas vezes tive de pedir pra falarem mais devagar e o Martín lá do albergue cansou de rir da minha insegurança balbuciada. Mas, consegui fazer amizades passageiras em Villa García com as crianças do X.O. e escutar bastante gíria. Aprendi a chamar a Ana de "chamuchera" e "tanguera", depois de tanto ouvir o José e o Carlos. E me arrisquei a entrevistar gente da orla da praia até a praça 33 para saber quem eram os candidatos preferidos daquelas eleições.

Assim que cheguei, o taxista avisou: "Não sabemos em quem votar, são todos iguais". Na verdade, não são todos iguais, mas o sentimento de boa parte da população é de que eram todos iguais. Desmerecido, descrente e desorganizado, o cidadão médio uruguaio, assim como o de qualquer dos países "em desenvolvimento", não fazem questão de escolher seus representantes porque simplesmente não se identificam com o modelo de democracia que é vigente. O sonho de uma nova cidadania e um novo modo de vida vinha da Universidade e do bairro do quilômetro 16, mas faltava no resto da população, que não sabe se prefere renda ou educação, segurança física ou dignidade, saúde ou representação.

O taxista disse mais: "há muita gente saindo do país". Isso também temos por aqui, como parte das ilusões construídas, das "fábulas", como diria Milton Santos, que a globalização nos impôs. Mas, em sua conferência, o espanhol Tomás Villasante, desmistificou: "Agradecemos que o Rio levará as Olimpíadas de 2016, pois já não temos mais dinheiro". Quebradeira total. Crise mundial. E isso se respinga, sim, no ânimo das pessoas. Os movimentos, eufóricos, queriam sempre emitir palavras de ordem ao final das conferências. Lá fora, as pessoas desanimavam com o discurso político e não queriam, sequer, discutir a Lei da Caducidade, que protege policiais e militares que torturaram presos políticos nos tempos da ditadura militar.

Por que o Uruguai mudou duas vezes a minha vida?

Porque é sempre lá que me vem a chama da determinação, o rumo a seguir, o caminho da compreensão. É de lá que veio, dessa última vez, a opção pela pesquisa-ação, o retorno (ainda tímido) aos movimentos sociais e as pazes com a política - não-partidária e para a vida inteira.

E é por isso que ontem, 25 de outubro, me lembrei tanto de Gonzalo, Martín, José, Carlos, Raquel, dos professores e alunos de Villa García, dos moradores do quilômetro 16, dos pescadores de Punta del Este, do taxista, dos catadores de papel, do senhor engravatado que com ar de ressentimento me disse que o Banco do Brasil "se fué del país", do saxofonista que dormia na praça, dos garçons, daquela moça simpática que nos levou a conhecer o PIN, da senhora que chorava no cinema, da moça que levava um gato na coleira e de vários outros personagens. Em quem eles votaram e de que modo votaram? Fosse eu, votaria em quem? Fossem eles, por aqui, votariam em 2010 em quem? Que clareza temos ao ver a realidade alheia? E com que clareza devemos ver a nossa? De que modo percebemos o mesmo lugar, em tempos diferentes? E de que forma devemos incluir as percepções de hoje em nosso futuro?

Montevidéu, para mim, é sonho que não precisa ser real e cotidiano para fazer sentido. É lugar que devo buscar sempre que (ainda que com recordações) quero compreender o meu próprio território. "Más allá del sur", como dizia o cancioneiro, é a porta que se abre para a América Latina, a minha América Latina.


obs.: COPYLEFT - A foto que antecede o texto é da equipe de comunicação da Universidade da República e foi retirada de www.extension.edu.uy