A página está em branco, mas a noite esteve ilustrada. Calçadas vazias, vias cheias de automóveis. Um carro branco parou na esquina. Me esquivei, obviamente. Contornei o quarteirão, para seguir sozinha na rua, na chuva, pisando em folhas úmidas, deparando-me com corpos de frio, com frio, num frio, corpos estilhaçados, longe da guerra, no mesmo abandono.
Noite iluminada de sábado. Blusa azul, calça de napa, guarda-chuva com a foto do Cristo Redentor. A chuva me lembra o Rio, sempre. Interessante foi que fiz tudo para estar só, queria, necessitava, mas não estava.
Fui ao Ouro ver Ivan. Ivan e sua performance. Um monólogo. Pensei sobre o teatro tradicional, que valoriza a experiência do ator e a reproduz, justamente, em monólogo. Estou a dizer besteiras? Ele dizia o mesmo, com seu corpo, seu bigode, sua fala, seus gestos reproduzindo até mesmo o mar.
Eu não. Esperava mais. Mais além até de “O Mercador de Veneza”. Shakespeare seria uma boa referência? Queria ver algo que se dilacerasse, como no início do espetáculo, algo de sensações, experimento e desejo de conhecer.
[toda a prateleira, tudo o que os livros poderiam dizer em suas poucas palavras...]
Estava eu instigada com Ivan, seus aparentáveis sessenta anos e a performance corporal forçada. Algo ali era clichê. Talvez os braços e as pernas. A meia-calça marrom. A ideia de homem de negócios, do tal “jogo do poder”, da cena pós-econômica, do questionamento do espetáculo em si mesmo e da sociedade do consumo. Tudo era um perfeito clichê. Me levou a pensar no pós-teatro. Para isso deveria servir o Ritual. Para não dizer o mesmo da angústia humana já esgotada e pouco resolvida. Será? Ele fazia reflexões que provavelmente fizera com muito mais força aos 20, aos 30, aos 40...
“Colocar em ação a cena do mundo”. Isso, em seu dizer e seu querer dizer, era o que ele mais desejara. Era o que fazia valer o trabalho de um ator. Uma reflexão epistemológica no palco. Mas, as pessoas não enjoam disso? Não se fartam de questionamento nos tempos em que os questionamentos mesmos não mais são aceitos?
Passei a anotar suas expressões, formulando as minhas. Malditos livros que estão na estante. E que não lemos. Não líamos. Não chegamos nunca a ler. Nisso estou de acordo. Malditas falas que nos falam o mesmo, o contrário do mesmo, mais do mesmo, e que nem sempre conciliamos. Sequer notamos. Isso foi o que Ivan delimitou tão bem: obras inacabadas, prontas a serem devoradas como pão. Anotei, percebi, me prontifiquei a sentir... Devorei?
E rabisquei, no instante em que a meia luz tornava-se inteira:
... “desejos, sensações, curiosidade, vontade, experiência, experimentos, sentimento, luz. reflexão comum dos seres humanos, entre os seres humanos, o medo. esperança, fala, vontade de ser e dizer, de dizer. uma busca, n’alma, em busca: a crença. e o que mais? dizer para entender, dizer para incomodar. é máscara? ou rosto?”.
Escrita total do bloquinho azul. Na estante, em outras oportunidades, significaria?