sábado, 18 de julho de 2009

modernismo de segunda geração

- Para quem quiser, gostar e considerar que lhe serve:


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.


Resíduo

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

"os ombros suportam o mundo"

Perguntou-me sobre qual meu papel no mundo. Enrolei, rodeei, fiquei de pensar.

Diante de seu silêncio, fitando-me, tratei de responder em doses pequenas de clichê as primeiras coisas que me vinham à mente. Pediu pra que eu escrevesse refletindo sobre todos os meus hábitos, costumes, a vida privada e a pública. Assim fiz, almejando algo talvez anterior ao "meu papel no mundo": a visão que tenho do mundo e de mim dentro do mundo, a escolha do que ser, fazer, viver e acreditar.

Quando terminei o texto, até tentei imprimi-lo, mas estava já sem coragem para exprimi-lo. Vi que nada era meu. A militância, a cidadania, a comunicação social, os índios, os sem-teto, a escola, a bicicleta, o pseudo-vegetarianismo... tudo fazia parte de uma bela retórica momentânea e construída. Ah, tudo bem que a autenticidade é uma pretensão muito pequena, mas custava ter ali algo meu? - cobrei.

- Por que não é seu esse papel? Por que não é sua essa visão de mundo?

Respondi mil coisas, com centenas de exemplos, mas sem qualquer unidade. Em nada havia sentido, afinação. Não sei. Não sei.

Então refez-me a pergunta, com o fim de simplificar:
- O que mais lhe deixa incomodada nesse mundo? Comece por aí...

Silêncio.

Tenho algumas suspeitas, mas, prefiro pensar um pouco mais.

mudei de idéia

É burrice.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

saudades da ágora que não vivi

Ando preocupada com a incapacidade de todos nós em debater qualquer assunto, do futebol à política. Não aceitamos o verbo, nem o nosso e nem o do outro, seja esse em função de nossa vida privada ou pública. Sem querer deixar nossos patamares de sobrevida, começamos a acreditar que discutir cansa. E isso é preocupante.

Nos não-lugares de hoje, nos destempos de sempre, tampouco existem diálogos. E sim não-diálogos, que são muito mais violentos. Não dialogar é não aceitar, não refletir, não viver. É interromper o pensamento, privar o outro da palavra, reduzir a auto-crítica, revelar nossa completa insegurança diante do mundo e sequer reconhecer-se como personagem em construção nesse mundo.

Em silêncio não exercitamos a escuta e o pronunciamento. Não há, logo, transformação. Deixamos de pensar e de saber o que pensa o outro. Isso, aliás, passa a ser pouco ou nada importante. Nos recolhemos e damos continuidade à era das decisões individuais, neutralizadas, apolíticas.

E o pior é que há tantos adeptos dessa modalidade de convivência social que - cuidado! - um tirano qualquer pode acusar você, que insiste em falar, de praticar conspiração. Pobre coitado de quem não fala ou não deixa falar: está apenas exercendo seu poder de liderança, que consiste em oprimir, sufocar quem ainda tem voz, acabar por consolidar a não-palavra. Morre pela boca quem não fala ou não deixa falar.

domingo, 12 de julho de 2009

você aceita perder?

Lembro que lá pelos dez anos eu tinha uma bola de jogar queimada, daquelas pequenas e duras, e sempre que ia passar férias no Bacalhau (lá em Goiás Velho) reunia a primaiada toda pra brincar. O problema é que, ruim pra caramba, eu sempre era a primeira a ser queimada. Certa vez, cansada de perder antes da hora (ou simplesmente de perder), apelei, tomei a bola da mão do Ironzim e encerrei a brincadeira. Estava determinado que tudo acabaria e, como a bola era minha, o poder também. O que eu ganhei dos meus primos com isso? Respeito? Ah, garanto que não...

Em O céu de Suely uma cena que me chamou bastante a atenção foi quando a avó da Hermila a obriga a pedir perdão por ser prostituta, por matar sua família de vergonha e, diante do silêncio, agride, bate, aperta, empurra, forçando o arrependimento da outra. Hermila acaba dizendo "desculpa", mas de um jeito tão forçado que fica claro como o poder ali, que era da avó, não valeu de nada e ambas perderam da mesma maneira.

Minha vizinha perdeu seu filho para o trânsito no início deste ano. Desde então, as manhãs de sábado para ela são de muita solidão e tristeza. Ela chora e escuta o disco do Padre Fábio de Melo na maior altura e até hoje não se conforma com a falta do seu primogênito. Aqui em casa todo mundo fica incomodado, mas não há muito o que fazer pois o assunto é dor. E ninguém sabe muito bem lidar com a própria dor, o que dirá com a dor do outro.

Situações de perda estão, volta e meia, relacionadas às disputas de poder (ou micropoder) existentes em uma relação, seja ela qual for. Listei essas três, tão distintas em suas origens e seus contextos, mas se for parar para pensar existem milhares em nosso cotidiano e todas lidam com o mesmo ponto: a fragilidade do ser humano diante da pouco programada frustração. A pessoa perde e não aceita, daí começa a reagir mal, de forma agressiva e violenta, exigindo de si, do outro e do mundo uma volta ao tempo, uma correção impossível ou até, como a avó de Hermila, um arrependimento forçado. É o homem em sua condição de criatura, revoltado com sua mediocridade perante as avalanches do mundo. "Eis que chega a roda viva...", que faz a gente acumular tanto rancor de si mesmo, da vida, do universo.

Besteira! Pura besteira! E quando nos convencemos da pequeneza desse movimento, ah, como a vida fica boa!

Hoje volto aos tempos do Bacalhau e noto bem que sempre me arrependia de tomar a bola das mãos dos meus primos, sabia que não era o melhor a ser feito, mas aí já era tarde e não podia mudar de idéia. E o orgulho desde aquela época me consumia. E se não é o orgulho que está em jogo no ato da perda, é o despoder, o descontrole, a saudade, a dificuldade de lidar com o imprevisto. E por não aceitar reagimos pela força, pela brutalidade. O famoso "se não vai por bem, vai por mal". Que é um completo desamor. Desamor de nós mesmos.

Ah, se soubesse disso antes! Negar a competição e aceitar ser queimada no início da partida é ótimo. Pra mim foi como descobrir o amor de verdade, de mim e do que me cerca. O amor que implica em liberdade e em reconhecimento do direito do outro. Aceitar a perder traz leveza, me faz ver que as escolhas das pessoas são delas e pouco ou nada interferem em minha vida, me possibilita retornar para dentro de mim, abandonando todo tipo de egoísmo, protocolo e embrutecimento.

Você aceita perder? Não. Pois eu recomendo. É essencial: dá prazer, emagrece, desencana, traz paz, a brincadeira continua, a vida segue e você nunca mais vai preocupar-se com o que "o outro está pensando".