quarta-feira, 20 de julho de 2011

Pelo direito de ser grupo, de fazer greve, de ter um posicionamento político e de assumir as próprias contradições

Nota: Escrevi esse texto para ser lido na assembleia da minha categoria, em greve por todo o país desde o dia 6 de junho. No entanto, como essa pronúncia deve passar dos dez minutos, pelo prolongamento do texto, não sei se terei condições de fazê-la. Deste modo, compartilho as ideias que me afligem aqui neste blog.




Gostaria de falar sobre algumas coisas que estão a incomodar.

A primeira delas é com relação ao individualismo que está posto na vida, no trabalho e até mesmo dentro do movimento sindical.

O individualismo radical tem sido a grande marca do século XXI. Desde as primeiras crises do capitalismo monopolista, na década de 1970, uma "nova sociabilidade" vem sendo engendrada entre as pessoas como forma de acompanhar os rearranjos necessários à reconstituição do sistema. Isso não quer dizer que estão a inculcar comportamentos, mas sim que há uma série de falsas consciências sendo organizadas e reelaboradas. Uma delas, e muito forte, é a do individualismo radical, aquele que me faz me sentir super-potente e, ao mesmo tempo, me culpa por tudo o que há de ruim na vida e no mundo.

Juntamente com o individualismo está a "novidade". "O mundo mudou", proclamam os donos do dinheiro há mais de 300 anos! E quanto mais crise econômica se vê pelo mundo, mais o discurso da "novidade", a apropriação da ideia de "revolução", juntamente com a proposta de "ser livre" e "ser indivíduo", são entranhados nas relações sociais. Esta primeira década do século XXI revelou bastante isso: crise, desemprego, miséria, exploração, revoltas populares, por um lado, e "novidade" na cultura, "tecnologia", alto consumo, ilusões, novos corporativismos, tentativa de dizer que as classes sociais se dissolveram, por outro. E onde está o individualismo? Está tangenciando comportamentos, pois cada vez mais somos levados a crer que o futuro depende de nós, que o sucesso depende de nós, que até mesmo a mobilização depende de nós, desde que seja feita por “cada um”; mas não por todos. As causas reais da exploração são camufladas e nós, trabalhadores, passamos a crer, em nossos cotidianos, que, de fato, somos os únicos responsáveis por todas as crises pelas quais passa o mundo.

Quando do início desta greve, ouvi muita gente dizer que “vai da consciência de cada um” aderir à greve. E o que é essa consciência de cada um? A falsa consciência aproxima essa “consciência de cada um” ao livre arbítrio, sem nem mesmo lembrar que essa “consciência de cada um” não brota como magia, mas sim como reflexão em conjunto.

O individualismo também está presente dentro de nosso próprio movimento quando ouvimos que a pessoa que sofre assédio moral é “fraca” por se sentir abalada com isso. Ora, além de cultivar, mais uma vez, a responsabilidade das partes pelo todo, esse discurso impede que enxerguemos e realizemos debates francos sobre o conformismo, sobre o medo, sobre a dominação e sobre o abuso de autoridade. Devemos evitar individualizar questões que são, em verdade, coletivas.

(...)

Também gostaria de pensar sobre o sentido da greve. Por que os trabalhadores realizam greve?

Desde os primeiros pensadores das relações de classe, que são as mesmas relações de produção, a greve é considerada o resultado de uma crise. Crise esta que, por sua vez, deriva da conscientização dos trabalhadores. E como é que nós, trabalhadores, adquirimos consciência? Consciência de quê? "Consciência de classe".

Se voltarmos nos escritos de Marx, perceberemos que a consciência de classe não surge de forma automática e metafísica, mas sim da percepção real por parte trabalhador de sua condição de exploração. Percepção essa, vale lembrar, que não é individual, mas sim coletiva. De tanto negarem a própria vida, com a morte do sentido do trabalho, os trabalhadores passam a reconhecer que seu processo de sobrevivência é resultado de uma luta entre o dono das forças produtivas, o dono do lucro, e eles, que produzem a mercadoria, a riqueza. "Consciência de classe" é consciência do posicionamento de um grupo na luta e classes.

Foi deste modo que a greve, nos primeiros postos de trabalho material do mundo, surgiu: do desespero dos trabalhadores diante de sua condição. E foi justamente quando os trabalhadores, já estranhando sua própria atividade de sobrevivência, perceberam que davam a vida por um lucro que nunca seria seu, que sustentavam um padrão de vida que nunca seria o seu e que sua única "propriedade", a mercadoria, tampouco seria reconhecida como resultado de seu esforço.

E hoje, o que mudou? Muitos ideólogos importantes reproduzem o discurso de que "não existem mais classes sociais", pois temos, sobretudo nas sociedades em desenvolvimento, um forte poder de consumo espalhado por bairros, faixas etárias, profissões e grupos. Pois essa é parte das ideologias contemporâneas. E é, ao mesmo tempo, o clássico modo do capitalista de dispersar o trabalhador.

Cabe aos donos do dinheiro manter algumas estruturas como: a burocracia, ou o Estado, a força coercitiva, ou as polícias, e as fábricas de ideologias, de falsas consciências, como as escolas, as universidades, as igrejas e as mídias. E tudo isso para quê? Para impedir a revolta de quem trabalha, para impedir a "consciência de classe", crítica e coletiva de quem sustenta o mundo, de fato. Pois é justamente essa revolta, esse reconhecimento de crise por parte dos trabalhadores, essa "negação da negação", que pode abalar o sistema produtivo.

Greve é para isso: para abalar o sistema, para sacudir a todos que convivem e coexistem com a injustiça, para fazer com que nossa "consciência de classe" seja pensada, repensada e reafirmada todos os dias. Para que nós façamos autocrítica e identifiquemos, em nosso próprio modo de levar a vida, o individualismo e as contradições que nos corroem.

E quanto a nós, trabalhadores da educação superior no Brasil, que não produzimos diretamente os bens primários ou secundários, por que realizamos greve? Que tipo de crise avistamos para sustentar uma greve?

Posso enumerar algumas. Talvez, esqueça de muitas:

1. Temos os mais baixos salários do funcionalismo público brasileiro; nosso piso sequer alcança a faixa de três salários mínimos. Ainda assim, boa parte da sociedade não considera nosso direito de reconhecer a crise, ou seja, nosso direito de reivindicar uma greve. Há quem diga por aí que nossa greve é "meramente política", pois eu rebateria esse boato lembrando novamente de Marx, que diz que "o poder material dominante em uma sociedade é também o poder espiritual dominante". Ou seja, das ideias dominantes. Quem tenta difamar o trabalhador e sua greve está vendo o mundo com os olhos do capital. E se nós, trabalhadores, não demonstrarmos que acreditamos em nossa greve, também estaremos reconhecendo nossa submissão à lógica de nossos patrões.

2. Lembro ainda que, desde o dia 31 de dezembro de 2010, quando a MP 520 foi editada, no último dia do governo Lula, passamos por novas ameaças de privatização dos serviços hospitalares nas unidades médicas universitárias. A MP 520 foi negada em votação no Senado, mas retomou ao cenário do Legislativo em forma de Projeto de Lei. Isso quer dizer que, para o atual governo, a única solução para o funcionamento dos HUs é a criação de uma empresa de direito privado que irá gerenciar o dinheiro público para contratar, como celetistas, os profissionais que atenderão a população. Ora, que tipo de segurança e de respaldo esse trabalhador da saúde precário terá? Por que um governo dito de esquerda quer enxugar a máquina pública e reduzir custos com contratação de pessoal? Esse não seria um posicionamento liberal?

3. Também vale recordar que, apesar dos últimos concursos, a projeção de novos estudantes que entraram nas universidades é inversamente proporcional à quantidade de servidores, tanto técnico-administrativos quanto docentes, que tomaram posse. Ou seja, não têm sido suficientes as projeções do Reuni, o programa de expansão e reestruturação das universidades brasileiras. Estamos sobrecarregados em nossas unidades, em todas as áreas ou funções. Trabalhar oito horas por dia, muitas vezes, é pouco. Tanto, que muitas unidades recorrem às gratificações e aos “projetos de extensão” para remunerar o funcionário público que faz hora extra (e que não deveria estar fazendo hora extra). Que tipo de crise está instaurada nesse processo estafante? O que será que não estamos conseguindo enxergar?

4. Não produzimos mercadoria, mas somos suporte para a formação de milhares de profissionais em todo o país. Profissionais esses que, apesar de estudarem em um sistema público, são orientados, na maioria das vezes, para conduzirem somente seus lucros e suas vidas privadas. E naturalizam a ideia de que não devem se envolver com questões coletivas, naturalizam a ideia de que não devem provocar danos ao sistema, naturalizam a ideia de que não podem questionar, falar, lutar contra o que os oprime. A contradição é que muitos se formam e não encontram emprego. E sequer conseguem entender o porquê disso. Pois, não usaram a universidade como espaço para pensar sobre isso. Estamos colaborando para formar profissionais tal qual querem as “agências de elite”: que não se sentem trabalhadores e, portanto, que reproduzirão as ideias dominantes dos proprietários de bens materiais e simbólicos. Claro que não somos os únicos responsáveis por isso (não quero aqui cair na “idola do tempo e do grupo” de que somos únicos e super-potentes), mas devemos debater esse tópico. O individualismo e a alienação do sentido da educação estão impregnados na universidade pública brasileira e uma greve é um bom motivo e uma boa ocasião para a reflexão sobre nossa própria responsabilidade, juntamente com as outras categorias.

(...)

Nossa greve é por salário, é pela dignidade no trabalho, é pelo reconhecimento da importância do técnico-administrativo, é por respeito, pela realização de mais concursos públicos e pela própria educação. Portanto, nossa greve é legítima e é política. Mas é legítima e política no sentido de que reconhecemos a crise e queremos soluções reais. Caso contrário, paramos. E paramos para lembrar aos donos do dinheiro que nem sempre e nem por tudo estamos dispostos a colaborar com o sistema.

Nossa greve, além de política, é econômica, social e simbólica. É uma greve consciente e não “partidária”, como estão a dizer. Sabemos muito bem da orientação ético-política-moral de todos os partidos brasileiros envolvidos com o movimento sindical. E sabemos também em quem votar. No entanto, não precisamos desse ou daquele grupo político, que por completa falta de autocrítica, considera-se “vanguarda” e guia das mentes proletárias. Não precisamos de “vanguarda”. Temos opinião própria, apesar de que sabemos que não vamos longe sem o coletivo. Não precisamos pertencer a feudos por vezes viciados para saber que o motivo da greve é legítimo, é um grito por libertação!

Não quero aqui desmerecer os meus colegas filiados aos partidos. Pelo contrário, quero agradecer-lhes pelo apoio, pela sinceridade em assumirem seus postos na luta de classes, pela experiência que têm de conviver com a coletividade e pelos ensinamentos da tradição. Só não posso aceitar a boataria que corre, e que até já foi reverberada em assembleia, de que há esse ou aquele partido político querendo derrubar o governo e usando a greve para isso. Não sou tão facilmente manipulável como pensam. E sei que nós trabalhadores, no plural, não somos facilmente manipuláveis. Acreditamos no coletivo, mas não queremos ver nossa "consciência de classe" subestimada.

(...)

Gostaria de finalizar denunciando a situação interna na qual nos encontramos nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), de cerceamento e restrição não somente do direito de greve, mas do direito à expressão, do direito à crítica e à manifestação de nossas opiniões. Já fui ameaçada e marcada dentro da universidade por mais de uma vez (e em mais de uma universidade), pura e simplesmente por falar o que penso. E também sei de muitos colegas que da mesma forma estão sendo azucrinados, velada ou abertamente, por outros colegas e por outras categorias que porventura se crêem “patroas”, donas da força de trabalho dos técnicos.

Faço um convite ao coletivo: vamos relatar abusos, vamos ter coragem de denunciar! Não é abaixando a cabeça para mentalidades escusas e autoritárias que seremos respeitados nas universidades e em todo o universo acadêmico. Sejamos francos, responsáveis, mas também sejamos fortes. Vamos realizar um longo debate sobre assédio moral e nos resguardar como seres humanos! Não vamos aderir à opressão! Como diria Paulo Freire, o oprimido, quando adere à opressão, não se reconhece mais, está imerso na realidade opressora. Vamos tentar, então, em nossos cotidianos, localizar quem nos oprime e a quem oprimimos, para que sejamos dignos de nossa história e de nossas lutas!