sábado, 16 de maio de 2009

engano

Trivial sentimento de distração dos sentidos. Perda do tato. Primeiras impressões escondidas. Idéias esparsas. A mais comum das reações diante das certezas da vida.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

das descobertas


Engraçado como tudo faz sentido tardiamente:

Viver três anos em Rondônia, numa cidade de 70 mil habitantes, sozinha, sem amigos, família, namorado ou qualquer consolo da vida privada; aprender a andar de bike e fazê-la de meio de transporte; passar a comer verduras todos os dias, fumar, deixar de fumar, fazer yoga, projeto de extensão, viajar até a fronteira do rio Guaporé com a Bolívia, brigar com as orientandas, pegar carona no chapolin do Washington; repetir o bordão da luta pela "universidade pública gratuita e de qualidade" (e, de fato, lutar); discutir com os colegas nas reuniões de departamento, gerenciar a assistência estudantil, dar patada nas pessoas além da conta, sorrir em momentos indevidos, chorar escondido às madrugadas de sábado; adotar um gato, devolvê-lo, adotar uma cachorra, devolvê-la; falar da vida dos outros com a Cris da cantina, comer pizza quatro queijos com o Juliano, passar horas ao telefone com a Beth, acompanhar a Solange nos casamentos e chás de panela, prometer visita à Cris Guse e não cumprir, discutir com a Amabile e depois pedir desculpas, admirar as histórias de vida do Givaldo, do Dennis, do Flávio e do Vininho; dançar forró num lugar contra-hegemônico também chamado de Terraçu's Metropolitan (sim, assim se escreve!); ser vigiada pelos vizinhos; ser assediada pelos homens com mais de 40; sentir-se acoada pelas questões de gênero; mudar de repente; vender os móveis; receber cartinha da Nely e visita do Rogerinho, presentes da Raquel e um abraço sincero da Núbia; participar da banca da Tati e da Dedê; perceber a cumplicidade do Neto, discutir política com o Centro Acadêmico; falar espanhol com o Talles; tomar cerveja no posto com a Graça; descobrir E.P. Thompson e Peter Burke sozinha (é verdade, ninguém me indicou "Costumes em Comum" ou "A Escola dos Annales"!); reler Adorno e Horkheimer; experimentar pinga orgânica na casa da Ivonete; pregar um cartaz do Che na parede da sala; tirar foto das cortinas floridas; nadar no Piracolino ou no Rio Vermelho; viajar vez ou outra para Porto Velho; comer peixe à beira do Madeira; não gostar das barcas; não achar graça nas piadas beradeiras; conhecer pessoas no Cine Amazônia, nunca mais voltar a vê-las; encontrar com a Carmemaura do tererê duas vezes em cidades diferentes de Mato Grosso; querer ir embora e logo em seguida desistir da idéia; chegar por acaso; pensar que tudo era um acidente; descobrir o blog Narrativas Amazônicas no meio das indicações do Observatório da Imprensa; encampar novas idéias; afastar-me das pessoas de propósito; ver todos os filmes da locadora; passar os finais de semana estudando; acordar às 11h em plena quarta-feira; viver para o trabalho; não querer mais nada disso; ver-me completamente insegura e fragilizada diante das pessoas e das relações; jurar que nunca mais voltaria; sentir saudades. Enfim, viver três anos intensamente, apesar dos receios, das estranhezas, das incertezas...

O encaixe para tantas peças desse quebra-cabeças só ocorreu hoje, pouco mais de um mês depois do retorno ao Cerrado. Não que haja arrependimento. Pelo contrário, cada dia tenho mais certeza de que meu espaço enquanto sujeito está onde crescem minhas raízes culturais. É uma questão mítica: a gente sai de casa para descobrir como é bom retornar, como na parábola bíblica. Mas, de repente, no dia da chuva de 15 de maio, no dia em que percebi meu primeiro fio de cabelo branco, no dia em que terminei de escrever sobre "o repórter cidadão" para um artigo que o Juliano vai apresentar na reunião do Intercom Norte, notei também que algo mais me faz sentido: o passado recente.

Faz sentido porque, conceitualmente, minha caminhada era uma só e estava em consonância com o discurso teórico, com o que procurei estudar e que, até então, parecia completamente sem nexo. Escrevi sobre a cidadania em Paulo Freire e consegui exemplificar, pelos textos dos meus ex-alunos (que estiveram sempre aqui no meu notebook, que eu li e reli tantas vezes...), como a construção do sujeito e de sua criticidade pode configurar-se no universo da prática jornalística. Descobri que nossas experiências no CCDA, guardadas às devidas proporções, funcionaram como um círculo de cultura e nos fizeram (a mim e a eles) olhar para a realidade com amor e consciência. Nossas histórias, nossas viagens, nossas fontes, nossas pautas e nossas ambições eram fruto de uma troca. Uma troca que faz crescer. De repente, eu falava de cidadania e falava também da minha própria experiência. E sabia todas as respostas para o que passei dias e noites remoendo. Fez-se a luz! E pensar que vivi para isso sem nem mesmo ter planejado...

E para dar lugar a novas inquietações num caminho que, não adianta, a gente só vê com o farol pra trás, olho novamente o único fio branco no meio da melena castanha, suspiro e concluo: minha história, por ser minha, é muito bonita. Que estalos dessa mesma natureza volte a acontecer outras vezes, como num misterioso sonho lúcido...

Obs.: Obrigada - de verdade - a todos que encontrei por aí e que não cheguei a agradecer pelas lições diárias, simplesmente, por não saber reagir aos processos de maturação que a vida nos impõe!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

a tal da fase, a tal da dor, o tal do riso

Fase - Substantivo feminino. Situação que implica em início e fim, mas que pode ser restabelecida. Assemelha-se a um ciclo. Implica movimento, mudança, adaptação, energia. Quando bem aproveitada, gera renovação, mas também dor – física ou sensorial. Um anfíbio que troca as camadas da derme está mudando de fase. As espinhas na juventude assinalam uma fase. A retração na vida adulta ou a tranqüilidade do temperamento do velho, outras. Por isso, a palavra fase adequa-se facilmente ao plural. Fases. São muitas. E repetitivas. O que pode significar, também, banalização. “É só uma fase” – quantas vezes já te pediram calma e pronunciaram essa frase? “Só” reduz a fase a um elemento diante de um conjunto. Haverá outra logo em seguida, calma, consola-te! A dimensão do vivido diante da fase não é tão profunda se vivemos fases tão semelhantes ao longo da existência.

Dor - Substantivo feminino. Sentimento de aversão do corpo em relação a outro, estranho. Reação do organismo diante do que machuca, mata, interrompe ou, por incrível que pareça, se repete. Esforço físico em demasia gera dor. Uma ferida na pele que interrompe o ciclo das células gera dor. Palavras geram dor. O que altera a sensorialidade é dor. O que altera também o pensamento é dor. Dor é ruptura e, assim, pode também estar contida no movimento da “fase”. A fase da dor no peito, a fase da dor nos olhos... a fase em que a adaptação não é aceita, é vista como um corpo estranho diante do próprio corpo. Quando intensa, revela tamanha fragilidade do ser diante de sua ameaça e, deste modo, é confundida com vergonha.

Riso - Substantivo masculino. Movimento da face que expressa alegria, satisfação, prazer. Quando intenso, é chamado de gargalhada. Quando fraco, pode soar cínico. Um esforço ou uma facilidade em sorrir, apesar de não serem oriundos do mesmo sentimento, podem indicar força, persistência. Um não deixar envergonhar-se, um não enxergar-se vencido. “Rir pra não chorar”, conforme arrematou Cartola. Esconder a inicial fragilidade, revelar que para o mundo tudo está bem; quando não está. Se a fase não é aceita, há dor e se a dor não é aceita, nasce o riso, que veio depois do choro, que é fruto de uma reação diante daquele primeiro corpo estranho – a fase. Nessa cadeia, há casos em que dor se converte em um novo sentimento que não mais a mera vergonha: o prazer. Eis que nasce o prazer. Se não, seria apenas um corpo estranho sendo expelido junto a outros corpos estranhos. O que comprova que a vida, além de complexa, é completa. Por isso dizem que “é só uma fase”. De tanto sentir, reagir, estranhar, revoltar, se gosta, se conforma.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

a ilusão pode aliviar uma segunda-feira proletária


E é assim que eu vou, por entre essas pedras, caminhando tranquila sobre a rua de estórias, sentindo o cheiro de cocô de cavalo, ouvindo o barulho das charretes, piscando diante do sol que cresce no dia claro, percebendo vivas almas que não circulam pelos mesmos espaços mais de uma vez e imaginando que acabo de começar um domingo. Um simples domingo.

"A igualdade é branca"



Prólogo em pílulas

(1) Este texto foi feito para uma atividade de sala de aula; por isso você vai encontrar algumas referências mais ou menos compatíveis com as normas da ABNT.

(2) Confesso que, ultimamente, ando viciada em dicionários. Deve ser pelo exercício rudimentar e conflituoso da conceituação - que implica em desconstrução.




“A igualdade é branca”


Em meados da década de 90, anos antes de seu falecimento, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski lançou uma trilogia que pretendia refletir sobre a carga das palavras que constituíram não só os ideais da revolução francesa, mas de toda a fase moderna no ocidente: liberdade, igualdade e fraternidade. Em cada filme, uma história do convívio privado e cotidiano das cidades era trabalhada e relacionada com as cores da bandeira francesa. No caso da igualdade, que é o que nos interessa, o branco predominou.

“A igualdade é branca” conta a história de Karol, um jovem polonês que vai para a França atrás da ex-esposa, tentar uma reconciliação. Dominique, a mulher, além de não retomar o relacionamento o deixa na rua, sem dinheiro, sem documentos, sem agasalho, sem bens. Karol então trama sua vingança, num percurso mirabolante que vai desde tomar um avião Paris-Varsóvia dentro de uma mala até barganhar terrenos baratos para retomar sua pequena fortuna. Obstinado, Karol trama sua própria morte, faz Dominique arrepender-se da separação e ainda se vinga, culpando-a de um suposto assassinato. Ao final, a morte não existe, o casal se aproxima, declara seu amor, mas o que prevalece é a revanche. Dominique encerra a trama aceitando sua detenção – muito mais física do que psíquica. E Karol faz Dominique sentir dor semelhante à sua.

Branco é fusão de cores. Assim como a igualdade é a fusão do igual com o desigual. Para que Dominique sentisse dor semelhante e tivesse condições de sofrimento e reflexão iguais às de Karol, houve na história uma tensão tamanha que resultou em desigualdade. Vingar-se não é justo. Vingar-se pode, dependendo da sociedade, ser até amoral. Um cristão, por exemplo, dá "a outra face". Logo, vingar-se proporciona condições de desigualdade. Mas Karol usou exatamente o revide para igualar Dominique ao seu amor – e à sua dor. A igualdade, então, seria a fusão de princípios, entre eles, seu próprio oposto: a desigualdade.Passei a fazer essa reflexão sobre o filme depois que recebi de uma professora, em uma disciplina no Mestrado, a tarefa de buscar conceitos. E comecei pelos dicionários. Pelo que Nicola Abagnano e Norberto Bobbio definem como igualdade em seus respectivos dicionários de Filosofia e Política.

Abagnano retoma a noção a partir de Leibiniz, que indica que tudo o que é igual, na verdade, é o que pode ser substituído. “Em geral, dois termos se dizem iguais quando podem ser substituídos um pelo outro no mesmo contexto, sem que mude o valor desse referido contexto” (ABAGNANO, 1963, p. 647). E é essa idéia de substituição que vai reger o que a sociedade moderna encara como igualdade: de princípios, de direitos, social, de propriedade etc. Ser igual perante os outros é o mesmo que poder ser substituído por outro, em situações diversas, sem que se mude a norma. Aliás, só assim uma norma pode ser aplicada. “De tal modo, por exemplo, que o réu de um delito d nas circunstâncias c pode ser substituído por qualquer outro réu do mesmo delito na mesma circunstância, sem que se modifique o procedimento da lei” (ABAGNANO, 1963, p.647).

Antes de Leibiniz, de acordo com o dicionário de Abagnano, a noção de igualdade, amparada pelo pensamento aristotélico, se restringia às coisas e a suas proporções: quantidades, valores, pesos e medidas. As coisas são iguais porque têm componentes iguais. Mas isso não se aplicava necessariamente às pessoas. Bobbio, em sua leitura política, diz que igualdade pode sim se referir às pessoas: no sentido explicado por Hobbes, em que os seres humanos não são semelhantes, mas possuem potências iguais e características físicas iguais. Iguais também podem ser os tratamentos que umas pessoas dão às outras. Iguais ou diferentes. Isso vai depender do quê? Do juízo de valor.

Pessoas possuem características iguais e podem viver situações iguais. Mas, são em essência diferentes e têm experiências divergentes. É aí que Bobbio aponta que o que existem são critérios de igualitarismo que vão se aplicar (ou não) a determinada organização social. Assim, para a organização política e normativa, a igualdade concorda de fato com o princípio da substituição, chamada aqui de distribuição, de Leibiniz:

“Impõe-se uma distinção. A igualdade pode ser afirmada, quer de certas características pessoais, quer da distribuição feita por alguém pelo menos entre outros dois, quer ainda de normas que estabelecem como tal distribuição há de ser efetuada (...) nos ocuparemos da igualdade como propriedade das regras de distribuição”. (BOBBIO, 1995, p. 597)

“Igualdade para os iguais. Desigualdade para os desiguais”. O famoso ditado dos "dois pesos" e das "duas medidas". Para garantir a justiça por entre a coletividade, há que se distinguir critérios como: a maioria, a minoria, os beneficiados, os não-beneficiados. Quando há debate sobre a tributação de uma cidade, por exemplo, poderemos notar uma proporcionalidade que pode vir a fazer o rico pagar mais e o pobre menos. Não é igual, mas é justo. Da mesma forma quando há uma maioria negra que não consegue entrar na Universidade. É maioria perante a sociedade, mas é minoria diante dos que conseguem chegar ao Ensino Superior. Logo, faz-se necessário aplicar o princípio da desigualdade para contemplar uma maioria que é minoria e, assim, ser justo com o tempo, a história, as condições do brasileiro negro e afro-descendente.

E assim vai. Se examinarmos igualdades e desigualdades caso a caso, notamos que a vontade coletiva – que é o que predomina no âmbito das normas – e a vontade individual – que é o que predomina quando o assunto são as intimidades de um casal como Karol e Dominique – nem sempre caminharão par e passo com a justiça. Afinal, o igual corresponde, na ação entre comuns, às cessões e concessões do outro. O que implica em, também, discutir a liberdade, a fraternidade, o azul, o vermelho...

Referências básicas



ABAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofía. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1963.


BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1995. 7ª Ed. vol. 1.


IGUALDADE é branca, A. Direção: Krzysztof Kieslowski. Roteiro: Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz. Produção: Marin Karmitz: Elenco: Zbigniew Zamachowski (Karol Karol), Julie Delpy (Dominique) et al. Polônia: Miramax Films, 1994. DVD (89 min).

óleo nas ferrugens não é antídoto

Engraçado, não me saem mais as palavras com a mesma facilidade. Não me vêm mais as mesmas certezas na cabeça. Não me identificam mais os mesmos traços diante do papel. Não são minhas as mesmas vontades refletidas. Não consigo mais dizer o que dizia. Nem exercitar livremente o pensamento, como fazia. Alguma coisa mudou. Em mim. Que não foi externo. Apesar de parecer que foi uma simples ferrugem. Daquelas que se passam óleo "silvo" e pronto. Mas não, não está nada pronto. Não é uma mera ação do tempo sobre o metal. É algo que corrompe por dentro, sem se deixar notar. É um não-existir. Que passa a existir - e a ser notado - desde a falta. É o exercício interrompido. Uma má digestão. E não basta um elixir. Não basta resolver. Não basta um óleo "silvo" na prataria. É algo a mais para se compreender.