Narrira, minha querida! Tudo bem?
Demorei pra ver seu vídeo, resultado da oficina “cinema de baixo custo”, porque havia algum problema com o áudio do meu computador. Só agora pude resolver isso. Só agora, então, sinto algumas coisas especiais que queria compartilhar. Então lhe escrevo. Não tenha pressa para ler. Nem se incomode em responder.
Queria agradecer a você e às outras meninas que foram suas parceiras (e que, aliás, eu não conheço) pelo trabalho. Sim, agradecer e não necessariamente parabenizar. Dar parabéns é legal, mas todos já lhe falaram isso, afinal, todos estão muito orgulhosos de você (eu também, claro!). Mais que parabenizar, quero lhe agradecer porque esse é um tema que muito me aflige nos dias de hoje. Você sabe, tenho enfrentado uma forte "batalha de ideias" aqui na minha casa por conta desse veículo tão leve, delicado, sutil e prazeroso que é a bicicleta.
Comecei a pedalar cinco anos atrás, quando ainda vivia em Vilhena (RO). A cidade, localizada a 700 quilômetros de Cuiabá (MT) e a 800 quilômetros de Porto Velho (RO), foi construída às margens da BR-364 e, de tanto crescer, passou a existir no mapa antes e depois da rodovia federal. De modo que atravessá-la passou a ser corriqueiro aos seus habitantes. Vivíamos pouco mais de 70 mil pessoas nesse lugar e, por ser plana, a cidade nos convidava a andar de bicicleta. Apesar de que muitos eram os automóveis em Vilhena (sabe, cidade de migração flutuante, repleta de pecuaristas gaúchos e paulistanos da construção civil, muita ostentação etc.), mais ainda eram as bicicletas. Não havia um estabelecimento na cidade que não reservasse em sua calçada um “bicicletário”. Não vacilei, pedalei!
Três anos depois retornei a Goiânia. E a minha primeira providência, quando “tomei posse” no novo trabalho, foi pedalar até lá. Enfrentei uma tumultuada Av. Perimetral Norte, até chegar ao Câmpus 2. Vendo que eu estava suada e esbaforida (como sempre e até hoje), um professor brincou, com certa ironia: “está animada, hein?”. Ao chegar em casa, minha irmã me repreendeu: “Você não está mais em Vilhena!”.
Com os meses correndo fui, novamente, cedendo e incorporando os medos da (e do) capital. Fácil, fácil deixei de ir ao trabalho de bicicleta. Passei a andar de ônibus, de carona, a pé e de táxi por toda a cidade. E das opções que me restavam, andar a pé era sempre melhor. Como o seu entrevistado e câmera Luis (ou Luiz?) observou: é possível perceber melhor a cidade quando não se está em uma bolha. Emblemático. Gostei disso. É possível perceber qualquer coisa dessa vida dura quando não se está em uma bolha. (pausa para observação: tenho pensado sobre como nosso exercício, aliás, deve ser sair da bolha, estourá-la, retirá-la das outras pessoas, acabar de vez com ela, pois é ela também que exclui e gera barbárie).
Até que resolvi “arriscar” novamente. Aos poucos, passei a rodar pelos arredores da minha casa. Depois arrisquei a pedalar também indo para alguns compromissos, como a dança, a terapia, a casa da orientadora, a aula na Praça Universitária, o pezinho de jatobá. E quando vi também estava na casa dos amigos, no samba, nas festas. Outra vez, quase que naturalmente, estava como em Vilhena, fazendo tudo de bici. Certo dia, recentemente, até cheguei a “dar carona” para o Álvaro no meu pedal (mas é claro que quem pedalou foi ele hehe). Atravessamos da casa da Tati para a casa dele. Era uma hora da madrugada, chegamos a cair uma vez, mas foi legal. E a Av. 85, tão medonha, estava calma, só com suas luzes.
Atualmente, ainda levo bronca da família por pedalar longas distâncias (“sem capacete, menina!”) e, mais, por pedalar até altas da madrugada. A minha mãe sempre me liga mil vezes até que eu volte para casa, o meu pai se oferece para me levar a todo canto e a minha irmã sempre descarrega aqueles sermões de filho primogênito: “você quer morrer?”. Pô, tenho quase 30, né? Como é que ainda me controlam dessa forma? Bom, retirando a relação emocional, edipiana e de extrema superproteção que tenho com a minha família (algo que venho tentando resolver só e na medida em que guardo forças), noto aí que há outro agravante: o preconceito. Com a bicicleta, com a rua, com a noite, com os outros da convivência cotidiana. Aliás, preconceito não: conceito formado. Um poluente mental.
O conceito formado é de que se deixarmos a “proteção” da capota e das portas dos carros, estaremos completamente reféns do azar, do desconhecido, do tempo, dos “malfeitores” e dos outros veículos. Enfim, é uma dependência irracional de um objeto. Nós, sujeitos, estamos sim “objetificados”, dependentes.
Ora, minha família foi só um exemplo, pois já vi muita gente comentando: “acho massa, mas não tenho coragem”. Ou, ainda: “Ah, se tivesse ciclovia eu até andaria de bicicleta”. Esse é um exemplo de poluente que a cultura do carro, fomentada pela política do Fordismo, instaurou na visão de mundo das pessoas.
Por isso que aquela campanha do Pedal Goiano cujo um dos slogans é "Quero deixar o carro em casa, mas sem ciclovia não dá" me parece pouco eficaz. Onde está a nossa coragem? Qual é a nossa decisão, de fato? Esperar? Parece que é. Tem sido. Tudo bem, entendo a postura do Pedal Goiano de agir como moderador e até educador de uma multiplicidade de pessoas com vidas diversas. Ora, mas passando por todo esse dilema pessoal, urbano e familiar, fico me perguntando o que é que falta para sermos mais incisivos, agressivos. O que é que falta para tomarmos “a” decisão de usar, de fato, a bicicleta como meio de locomoção?
O trânsito é pesado, carros e motocas normalmente não nos respeitam, pedestres nos mandam sair da calçada... sim, é desse jeito! E daí? Vamos deixar de existir? Ora, mas como vamos incomodar? Fazendo “tuitaço” ou pregando adesivo de “eu pedalo” nos carros? A mudança deve ser estrutural e superestrutural ao mesmo tempo – se é que eu posso fazer uso desses termos (talvez não).
O que quero dizer com isso é que, talvez, nossa primeira necessidade não seja exatamente a ciclovia (não que essa não seja uma necessidade extrema, não que as precisões não estejam imbricadas), mas sim a remoção de algumas ideias fixas, de conceitos bem arraigados que nos impedem de tomar as decisões. Tal qual a noção de “perigo”.
Assim como você e todos os que vocês revelaram nesse pequeno documentário, quero ciclovias, não gosto de pedir autorização para o Estado para me locomover e não gosto de seguir as cartilhas do Detran para a minha “boa” conduta nas ruas. Tal como muitos que conhecemos, não suporto mais o transporte individual, carregado de status e outros poluentes. E então, que jeito temos se não agir, andar de bicicleta já?
Por tudo isso, Naná, é que devo lhe agradecer. Lutar com as ideias e encorajar as pessoas, nesse caso, me parece tão ou mais importante do que pedir ciclovia para o prefeito. Não vamos esperar as condições ideais. Nem vamos nos preocupar tanto com a nossa proteção burguesa, o nosso medo de nos arranhar, de viver. É isso o que digo a mim mesma todos os dias (ainda que nem sempre consiga ouvir) e que, depois de saber que o número de ciclistas nas ruas aumentou “mais de mil por cento”, terei ainda mais segurança em afirmar!
Um beijo!
Demorei pra ver seu vídeo, resultado da oficina “cinema de baixo custo”, porque havia algum problema com o áudio do meu computador. Só agora pude resolver isso. Só agora, então, sinto algumas coisas especiais que queria compartilhar. Então lhe escrevo. Não tenha pressa para ler. Nem se incomode em responder.
Queria agradecer a você e às outras meninas que foram suas parceiras (e que, aliás, eu não conheço) pelo trabalho. Sim, agradecer e não necessariamente parabenizar. Dar parabéns é legal, mas todos já lhe falaram isso, afinal, todos estão muito orgulhosos de você (eu também, claro!). Mais que parabenizar, quero lhe agradecer porque esse é um tema que muito me aflige nos dias de hoje. Você sabe, tenho enfrentado uma forte "batalha de ideias" aqui na minha casa por conta desse veículo tão leve, delicado, sutil e prazeroso que é a bicicleta.
Comecei a pedalar cinco anos atrás, quando ainda vivia em Vilhena (RO). A cidade, localizada a 700 quilômetros de Cuiabá (MT) e a 800 quilômetros de Porto Velho (RO), foi construída às margens da BR-364 e, de tanto crescer, passou a existir no mapa antes e depois da rodovia federal. De modo que atravessá-la passou a ser corriqueiro aos seus habitantes. Vivíamos pouco mais de 70 mil pessoas nesse lugar e, por ser plana, a cidade nos convidava a andar de bicicleta. Apesar de que muitos eram os automóveis em Vilhena (sabe, cidade de migração flutuante, repleta de pecuaristas gaúchos e paulistanos da construção civil, muita ostentação etc.), mais ainda eram as bicicletas. Não havia um estabelecimento na cidade que não reservasse em sua calçada um “bicicletário”. Não vacilei, pedalei!
Três anos depois retornei a Goiânia. E a minha primeira providência, quando “tomei posse” no novo trabalho, foi pedalar até lá. Enfrentei uma tumultuada Av. Perimetral Norte, até chegar ao Câmpus 2. Vendo que eu estava suada e esbaforida (como sempre e até hoje), um professor brincou, com certa ironia: “está animada, hein?”. Ao chegar em casa, minha irmã me repreendeu: “Você não está mais em Vilhena!”.
Com os meses correndo fui, novamente, cedendo e incorporando os medos da (e do) capital. Fácil, fácil deixei de ir ao trabalho de bicicleta. Passei a andar de ônibus, de carona, a pé e de táxi por toda a cidade. E das opções que me restavam, andar a pé era sempre melhor. Como o seu entrevistado e câmera Luis (ou Luiz?) observou: é possível perceber melhor a cidade quando não se está em uma bolha. Emblemático. Gostei disso. É possível perceber qualquer coisa dessa vida dura quando não se está em uma bolha. (pausa para observação: tenho pensado sobre como nosso exercício, aliás, deve ser sair da bolha, estourá-la, retirá-la das outras pessoas, acabar de vez com ela, pois é ela também que exclui e gera barbárie).
Até que resolvi “arriscar” novamente. Aos poucos, passei a rodar pelos arredores da minha casa. Depois arrisquei a pedalar também indo para alguns compromissos, como a dança, a terapia, a casa da orientadora, a aula na Praça Universitária, o pezinho de jatobá. E quando vi também estava na casa dos amigos, no samba, nas festas. Outra vez, quase que naturalmente, estava como em Vilhena, fazendo tudo de bici. Certo dia, recentemente, até cheguei a “dar carona” para o Álvaro no meu pedal (mas é claro que quem pedalou foi ele hehe). Atravessamos da casa da Tati para a casa dele. Era uma hora da madrugada, chegamos a cair uma vez, mas foi legal. E a Av. 85, tão medonha, estava calma, só com suas luzes.
Atualmente, ainda levo bronca da família por pedalar longas distâncias (“sem capacete, menina!”) e, mais, por pedalar até altas da madrugada. A minha mãe sempre me liga mil vezes até que eu volte para casa, o meu pai se oferece para me levar a todo canto e a minha irmã sempre descarrega aqueles sermões de filho primogênito: “você quer morrer?”. Pô, tenho quase 30, né? Como é que ainda me controlam dessa forma? Bom, retirando a relação emocional, edipiana e de extrema superproteção que tenho com a minha família (algo que venho tentando resolver só e na medida em que guardo forças), noto aí que há outro agravante: o preconceito. Com a bicicleta, com a rua, com a noite, com os outros da convivência cotidiana. Aliás, preconceito não: conceito formado. Um poluente mental.
O conceito formado é de que se deixarmos a “proteção” da capota e das portas dos carros, estaremos completamente reféns do azar, do desconhecido, do tempo, dos “malfeitores” e dos outros veículos. Enfim, é uma dependência irracional de um objeto. Nós, sujeitos, estamos sim “objetificados”, dependentes.
Ora, minha família foi só um exemplo, pois já vi muita gente comentando: “acho massa, mas não tenho coragem”. Ou, ainda: “Ah, se tivesse ciclovia eu até andaria de bicicleta”. Esse é um exemplo de poluente que a cultura do carro, fomentada pela política do Fordismo, instaurou na visão de mundo das pessoas.
Por isso que aquela campanha do Pedal Goiano cujo um dos slogans é "Quero deixar o carro em casa, mas sem ciclovia não dá" me parece pouco eficaz. Onde está a nossa coragem? Qual é a nossa decisão, de fato? Esperar? Parece que é. Tem sido. Tudo bem, entendo a postura do Pedal Goiano de agir como moderador e até educador de uma multiplicidade de pessoas com vidas diversas. Ora, mas passando por todo esse dilema pessoal, urbano e familiar, fico me perguntando o que é que falta para sermos mais incisivos, agressivos. O que é que falta para tomarmos “a” decisão de usar, de fato, a bicicleta como meio de locomoção?
O trânsito é pesado, carros e motocas normalmente não nos respeitam, pedestres nos mandam sair da calçada... sim, é desse jeito! E daí? Vamos deixar de existir? Ora, mas como vamos incomodar? Fazendo “tuitaço” ou pregando adesivo de “eu pedalo” nos carros? A mudança deve ser estrutural e superestrutural ao mesmo tempo – se é que eu posso fazer uso desses termos (talvez não).
O que quero dizer com isso é que, talvez, nossa primeira necessidade não seja exatamente a ciclovia (não que essa não seja uma necessidade extrema, não que as precisões não estejam imbricadas), mas sim a remoção de algumas ideias fixas, de conceitos bem arraigados que nos impedem de tomar as decisões. Tal qual a noção de “perigo”.
Assim como você e todos os que vocês revelaram nesse pequeno documentário, quero ciclovias, não gosto de pedir autorização para o Estado para me locomover e não gosto de seguir as cartilhas do Detran para a minha “boa” conduta nas ruas. Tal como muitos que conhecemos, não suporto mais o transporte individual, carregado de status e outros poluentes. E então, que jeito temos se não agir, andar de bicicleta já?
Por tudo isso, Naná, é que devo lhe agradecer. Lutar com as ideias e encorajar as pessoas, nesse caso, me parece tão ou mais importante do que pedir ciclovia para o prefeito. Não vamos esperar as condições ideais. Nem vamos nos preocupar tanto com a nossa proteção burguesa, o nosso medo de nos arranhar, de viver. É isso o que digo a mim mesma todos os dias (ainda que nem sempre consiga ouvir) e que, depois de saber que o número de ciclistas nas ruas aumentou “mais de mil por cento”, terei ainda mais segurança em afirmar!
Um beijo!