sábado, 15 de agosto de 2009

metodologia

Não prezo a neutralidade. Mas, me afastei para olhar. Olhar, olhar, olhar. Vasculhar. Mexer em feridas, em restos guardados, vivências inacabadas.

Por enquanto, me silencio. E espero com relativa calma o amanhecer, com seus sons tão leves quanto os primeiros raios solares. E aprendo a gritar menos, respeitando minha própria respiração. Com o orvalho da madrugada, pode vir também a provocação, a reflexão, o conhecimento. Silenciosos, sempre.

O que quero? Evitar viver hoje, para experimentar completamente amanhã; falar quase nada agora, para dizer tudo o que andei pensando. Amanhã, depois de preparada. O que busco? A tal palavra verdadeira, que não está descolada da conduta. Mas não para deixar de reagir, para aderir. Sim para refletir e, ao refletir, provocar de fato, ainda mais. Para todo o sempre!

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

esquizofrenia da orientação, da cópia, da educação

Imagem impressa em um livro com tradução datada de 1995:

Um recorte escuro, de cenário obscuro. Mesa, cadeira, objetos esparsos. Ao fundo e sem detalhes, uma silhueta, sentada. Sua sombra, ao contrário, é nítida. O lugar poderia ser um escritório ou um estúdio de rádio improvisado. Sobre a mesa, microfone, parede com feltro ou espuma, ventilador. Um clarão ao fundo.

A percepção melhora: é um homem com roupa de militar, de fato sentado, com um bloquinho de anotações no lado esquerdo e o tal microfone à direita. Parece calar-se. Pode vir a falar. Abaixo da fotografia, uma legenda: "agenciamento da palavra de ordem". Imaginei? Ou as palavras me induziram a imaginar?

Logo abaixo, algo sobre a ordem:

“A professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela “ensigna”, dá ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de significações primeiras, não são a conseqüência de informações: a ordem se apóia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é redundância. A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado – sujeito da enunciação etc.). A unidade elementar da linguagem – o enunciado – é a palavra de ordem. Mais do que o senso comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade de abominável que consistem em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é feita par que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. (...) As palavras não são ferramentas; mas damos às crianças linguagem, canetas e cadernos, assim como damos pás e picaretas aos operários. Uma regra de gramática é um marcador de poder antes de ser um marcador sintático”.

Não, não imaginei! Era, de fato, a representação do totalitarismo.


Inspiração/Citação: Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia”. Tomo 4. Vol. 2

terça-feira, 11 de agosto de 2009

eu, me, mim, comigo

Pronomes pessoais são intensos e contribuem para os atos de lembrar. Usar o verbo em primeira pessoa é como olhar para a rua estando no parapeito da janela: considerando a cortina, a vidraça, a poeira, o que comi hoje, as boas novas que recebi e o humor que me acometia quando a banda passou, lá fora. Falar a partir de mim, em tom de pronome reflexivo, impede de pensar em “algo” ou “isto”. Me faz esquecer o que é neutro (aliás, o que parece ser neutro, mas não é): a terceira pessoa. Por isso, é com fluência que me sai o “eu”.

“Eu” de primeira pessoa, de ponto de partida próprio e de consideração de todas as vivências abstratas e concretas que se possa ter. Optar pela primeira pessoa é dizer com afeto e – por que não? – com parcialidade. Afeto que diz respeito às dúvidas, à existência, à busca por respostas sobre angústias comuns, enfim, ao ato de investigar. Por que não? – repito.

domingo, 9 de agosto de 2009

decupagem da lucidez

Quem fala:

Estamira sem carne, Estamira invisível vê e sente as coisas tudinho. Por isso que eu sou Estamira mesmo, né? Tem vez que eu fico pensando: mas eu não sou um robô sanguíneo, eu não sou um robô! A culpa é do hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário, que joga a pedra e esconde a mão. Nunca mais encostarás em mim! Olhou para os pés de coqueiro e disse: isso é que é o poder, isso é que é real.

Dominação:

Me trata como eu trato que eu te trato. Me trata com o teu trato que eu devolvo o teu trato. Não adianta. Ninguém e nada vai mudar meu ser. Eles está pelejando pra ver se atinge uma coisa que se chamam de coração meu ou então a cabeça. Eles estão fudido!

Aprendizado:

Vocês não aprendem na escola, vocês copiam! Vocês aprendem é com as ocorrências. Tenho neto de dois anos que já sabe disso, que ainda não foi na escola copiar mentiras e hipocrisias charlatais.

Liberdade:

A dra. me perguntou se eu ainda estava escutando a voz que eu escutava. E eu escuto as coisas, fico escutando as vozes dos astros e fico pensando: como é que eu sou lúcida? Eu falei pra dra. Alice: minha cabeça tem hora que dá choque. Não dói não, dá agonia. Dá choque. Bate igualzinho onda do mar. A dra. passou remédio pra raiva. (risos) Eu fiquei muito decepcionada, muito triste, muito profundamente com raiva de ela falar uma coisa daquela. E ela disse ainda sabe o quê? Que deus que livrasse ela, que isso é magia, telepatia, a mídia e o caralho. Porra, pra quê, porra? Ela me ofendeu demais da conta aquele dia. Ó o retorno, 40 dias. Presta atenção nisso. Olha, e ainda mais: eu conheço médico, médico, médico mesmo, direito. E ela é copiadora. Eu sou amiga dela, eu gosto dela, eu quero bem a ela, quero bem a todos. Mas ela é copiadora. Eles estão fazendo sabe o quê? Dopando, quem quer que seja, com um só remédio. Não pode. O remédio... quer saber mais que Estamira? Presta atenção. O remédio é o seguinte: se fez bem, para, dá um tempo. Se fez mal, vai lá e reclama, como eu fui três vezes, na quarta vez que eu fui atendida. Entendeu? Mas não quero o mal deles não. Eles estão copiando. O tal de Diazepan então... entendeu? Se eu beber Diazepan... se eu sou louca, visivelmente, naturalmente, eu fico mais louca. Entendeu agora? O tal de Diazepan... Não, eles vai lá e só copeia, uma conversinha qualquer e só copiar e tó... Ah, que que há rapaz? Isso não pode. Como é que eu vou ficar todo dia, todo mês, cada marca e eu vou lá apanhar o mesmo remédio? Não pode, é proibido. Entendeu agora? E eu não estou brincando, estou falando sério. E eu ia devolver a ela o remédio, pros viciados deles. Toda coisa tem limite, esses remédios são da quadrilha, da armação do dopante.


(Fragmentos sensíveis, fortes e verdadeiros, mais ou menos na íntegra, indicados para momentos de reflexão. As opiniões são de Estamira e foram retiradas do filme homônimo de Marcos Prado. Não sei ao certo o porquê, mas essa é a quarta ou quinta vez que me emociono com a história dessa mulher, heroína real e sem ilusões: velha conhecida, deveras manjada, mas sempre com algo mais a dizer por meio desse momento congelado que virou película).

lembrando de Abel Silva

O que penso é que Abel Silva, nas composições abaixo, não fala pura e simplesmente de amor. Ele está sempre às voltas com a liberdade, a fala, a voz, o poder de pronunciar-se. Por isso tenho lembrado tanto de seus versos. Porque antes de refletir academicamente sobre sujeito, autonomia, cidadania e liberdade, quero sentir - e experimentar - o que é tudo isso. E isso é soltar a voz.


Alma

Há almas que têm as dores secretas
as portas abertas sempre pra dor
Há almas que têm juízo e vontade
alguma bondade e algum amor
Há almas que têm espaços vazios
amores vadios, restos de emoção
Há almas que têm a mais louca alegria
que é quase agonia, quase profissão
A minha alma tem um corpo moreno
nem sempre sereno, nem sempre explosão
Feliz esta alma que vive comigo
que vai onde eu sigo o meu coração


Jura Secreta

Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que não roubei
A jura secreta que não fiz
A briga de amor que eu não causei

Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que eu quero me suprime
Do que por não saber ainda não quis

Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega é o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri


Liberdade

Fernando Pessoa


Ai que prazer.
Não cumpir um dever.
Ter um livro para ler.
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente matinal,
como tem tempo
não tem pressa...

Livros são papeis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta.
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fanha, José e Letria, José Jorge (org.). Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer. Cascais: Ed. Terramar, 2003.