domingo, 29 de novembro de 2009

será que é o contrário?

Escolhi começar a semana com uma poesia, uma música, um videoclipe. Nada que me dê muito trabalho para articular palavras. Não, não é que eu esteja pouco inspirada. É que a produção está intensa. E é assim que acontece: eu sou funcionária e ele é que faz samba até mais tarde. E o Chico, mais uma vez (alguém me empresta outro poeta²?), fala por mim. Por nós. Porque quando acordo, ele adormece. Pelas noites, bem que tento acompanhá-lo, mas me impedem a rotina, a vida, a energia, o frene si e as necessidades tão diferentes. Um dia, quem sabe, não escutamos a correria da mesma cidade, que alarde, e sentimos o mesmo sono de manhã? Um dia, quem sabe, peço licença e ele faz um show pra mim? Afinal, já perdemos (ou teremos perdido) a noção da hora.

domingo, 22 de novembro de 2009

afinal, o que é

Há quem diga que felicidade é satisfação. E há quem proteste, argumentando que felicidade é nada. Há quem levante a possibilidade de pequenos espaços temporais de felicidade. E há quem reconheça que é feliz em excesso. Seja lá o que for felicidade, algum filósofo existencialista deve explicar. Algum poeta romântico também. Um cientista, um político, um padeiro. Cada um ao seu modo, com a sua visão de mundo, mirando aqui e acolá, vai arriscar, medir, apontar e ponderar: felicidade? Talvez.

Não. Mas eu não vou fazer o mesmo. Não tenho receita e penso que parte da minha felicidade não é nem um triz da sua - a não ser que façamos do corpo e do cosmos a mesma leitura.

Não vou dizer que felicidade é amar, trocar experiências e aprender, porque em todos esses processos vivemos muito mais o conflito do que a calmaria. Não arrisco considerar que eu ou mais sei lá quem somos felizes porque passamos horas e horas e horas conversando e nos (re)conhecendo cada vez mais. Isso é momento de êxtase, mas pode não ser necessariamente felicidade para ambos. Pra mim pode ser bom, pra qualquer outro que seja, nem tanto. E o bom pode vir do acordo, mas também pode vir do desacordo. De todo modo, felicidade é troca? Quando nos abala ou quando nos renova? Felicidade: viver.

É por isso que penso que muitas vezes confundimos as palavras e as reações. Se o ato de viver já me faz mudar e ser mudada, não poderia eu considerar felicidade uma consequência desse ato, desse processo? Ou, de forma estanque, passo o tempo a buscar aquela felicidade que seria somente a paz? E a paz seria o quê? Calmaria? Ora, e a transição, de onde veio? Da estabilidade? Então se solto um sorriso, ainda que forçado, como boa parte das reações que o mundo me manda representar, automaticamente sou feliz? Do contrário, se forjo-me ranzinza, se reclamo mais do que devo, se sinto muito questionar suas certezas, se sinto mais ainda questionar as minhas próprias certezas, então não sou feliz? Sou uma eterna angustiada em meu livre arbítrio? Sou viva?

Felicidade, afinal, o que é, que não eu mesma?

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

a arte na era de sua reprodutibilidade técnica


Alguém que toca violão e que quis cantar Céu. Gostei. Sobre o amor e seu trabalho silencioso. É livre de purismos. É o que o cara é. É um fã ou um aspirante querendo soltar os dedos nas cordas do violão. Na casa dele, de bermudão. Ele mesmo liga e desliga a webcam. Ele mesmo erra a letra, afina e desafina. Ele recria e refaz. Para aparecer ou para dizer. E a arte está aí para isso, para ser de todos, da forma como se inspira e se acha que deve. E a comunicação também está aí para isso: para que eu goste exatamente de qualquer coisa, mera invenção. Para que todos sejamos público e produção. Para que não haja mais tanta separação entre o que é arte e o que é cultura. Entre o que é de todos e de um só.

alguém me empresta outro poeta?



Abel Silva outra vez




Minha casa está calma

eu é que sou turbulento,
o país navega, dizem,
eu é que me arrebento
eu é que sempre invento
toda esta ventania
eu é que não me contento
com o rumo da romaria

não sei se a sorte é cega
ou eu que vivo a teimar:
sei que eu sou o barco
o marinheiro e o mar.



sábado, 14 de novembro de 2009

resistir - ou o feminismo de todos os dias


Para as meninas de fogo


De repente, preferimos fechar a roda e conversar entre nós. Sobre eles? Não. Sobre nós. Não cogitávamos ali nossas vidas com eles ou por eles. Ignoramos isso. Tínhamos ganas de descortinar nossas curiosidades sobre nós mesmas. E assim fizemos.

Falar sobre nós foi muito além da vida privada ou dos relacionamentos privados - como frequentemente as mulheres costumam dividir suas vidas com as outras: namorados, amigos, filhos, maridos, amantes, netos. Queríamos compartilhar sentimentos, sonhos, livros lidos, cheiros percebidos, experiências adquiridas e, acima de tudo, propostas para nosso futuro.

Vínhamos de um encontro sobre Educação Popular que nos reunia na condição de militantes ainda em iniciação e guardávamos, então, uma ânsia de mudança que deveria começar ali, naquele momento. Encontramos nossa opção: sem separar, segregar ou distanciar, nos fechamos para que nos aproveitássemos melhor. Para que nos descobríssemos outra vez. Para que digeríssemos melhor todo o resto da vida e compreendêssemos nosso papel no mundo, enquanto mulheres, amigas, irmãs, cúmplices, enquanto meninas com um caminho, uma rota, um mapa e muitas ideias em comum.

Foi aí que eles ficaram mudos, perdidos, com a atenção desatenta em frente à TV, como quem quer ouvir, procurando nossas broncas e nossos sorrisos. Éramos uma turma grande, mas, quando resolvemos conversar só entre nós mesmas, calamos os homens. Sim, eles precisavam de nós. E quem disse que não precisam? Mas havia um encantamento muito maior entre nós do que entre eles. Estávamos competindo? Não, eles são ótimos: doces, inteligentes e sedutores, cada um ao seu modo. Ótimas companhias. Mas, estávamos muito mais preocupadas com os nossos próprios encantos, nossos ascendentes, olhares e hormônios. Sempre que tentávamos incluí-los em qualquer assunto, o ato de retomar as falas anteriores era tão cansativo que - pronto! - sem notar estávamos as cinco fechadas em nossos discursos. Adiantava? Não. Era um ato de sobrevivência aproveitar a nós mesmas com a maior intensidade possível.

Nos apaixonamos umas pelas outras? Claro que sim. Estávamos levando o feminismo ao pé da letra? Talvez, para experimentar. Ultrapassamos a conta com a militância, a ponto de levá-la para a mesa do bar? Quem nos dera! As hipóteses são muitas. Inegável foi nosso prazer, nossa contemplação e a nutrição de nossas almas ao ouvir uma e outra companheira pronunciar os mais variados temas.

Daí à reflexão daquele ato, uma consequência. Enquanto uma das cinco meninas discursava (ou "palestrava", como brincamos) sobre o "masculino" e o "feminino" no mundo, sobre mitos, fábulas e falsas mortes do simbólico, lembrei da Simone de Beauvoir. Foi como reler O Segundo Sexo e compreender o que li há cerca de um ano pela fala de outra mulher - melhor ainda: uma amiga me ajudava a reinterpretar Simone! Toda e qualquer tentativa que temos de nos enxergar enquanto seres independentes, que não são a costela dos homens ou que não são a outra metade dos homens, nos é roubada todos os dias. Nos é roubada quando nos exigimos os dois quilos a menos, pintamos as unhas, deixamos de nos encontrar, desistimos da política, quando não sabemos trocar o pneu de um carro, quando disputamos entre nós mesmas a atenção sexualizada deles, quando não nos consideramos seguras para voltar para casa sozinhas no meio da madrugada, quando encampamos o pensamento hegemônico do desamor.

Uma mulher branca e burguesa prefere ficar ao lado de um homem branco e burguês do que de uma mulher negra e proletária - escreveu Simone. Nossa independência do olhar do outro, que nos domina, é perdida cada vez que assim escolhemos estar ao lado de um homem que consideramos ser mais iguais a nós do que as próprias mulheres - comentou, ao seu modo, a amiga que tomou a palavra. E quantas vezes não fazemos isso? - pensamos. Deste modo, chegamos ao acordo de que o que nos restava para aquele momento (e para tantos outros) era a tentativa de nos recuperarmos.

A essa altura do diálogo e da troca, eis que caímos em leve besteira de definir um isso ou aquilo para nós e para eles. Até perceber que, mais uma vez, poderíamos incorrer no erro da comparação complementar.

...

Chega! Vamos conversar com eles novamente?

Nos (re) misturamos. Contudo, sem sentir que fomos vencidas e sem querer vencê-los. Aliás, continuamos a amá-los. Porém, com a certeza de que é de nós mesmas que precisamos nos momentos inspirados, dificultosos ou de renovação. Como ontem.

Para resistir, transformar e evoluir, nada melhor do que as situações mais corriqueiras da vida, entre mulheres. Sem competição, mas com a clareza de que as diferenças não devem ser esquecidas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

imbricações

E, de repente, tudo começa a fazer sentido. Os fragmentos de realidade e de virtualidade se resumem a uma só vontade do ser humano: conspirar, estar junto, respirar conjuntamente. É o velho desejo da mordida na maçã.

Hoje, ao fim da tarde, a Agnes me mostrou como funciona o Google Wave, mais um aparato para que as pessoas troquem linguagem, valores, informações e símbolos na rede. Entendi quase nada, mas mesmo assim pedi que me mandasse um convite de criação da minha conta. Logo em seguida, pensei: por que quero entrar para mais uma rede? E me veio uma preguiça leve, daquelas que vai crescendo conforme a gente se afasta do "novo".

Pelo que vi, as conversas entre as pessoas no Google Wave são mais dinâmicas do que no Orkut ou no Twitter e mais rápidas que o bate-papo em salas coletivas ou nas janelinhas do Messenger. Além disso, você ainda pode mandar e-mail em forma de vídeo, áudio, texto e o que mais considerar conveniente. Pode trocar canais de interação sem precisar abrir e fechar outras janelas e acompanha todas as conversas de e com seus amigos desde o início, para que a tão sonhada "interatividade" de Bertolt Brecht seja garantida. Aliás, me parece que o "wave" da onda é justamente pela facilidade de fluir no espaço imaterial das informações.

Aí foi que apareceram umas tantas dúvidas: Será que é mais um software nas nossas vidas? Mais uma rede social? Mais uma possibilidade de interação? Por que pedi um convite para entrar no Google Wave, se tanta gente me convida para o Facebook e eu não vou?

Cheguei em casa e fui bater papo com o Leo, pelo Messenger. Coisa rara, já que há muito todos nós (não só eu, não só ele, você também) perdemos a paciência com o barulhinho "tu-ru-rum" daquela janela piscante. Houve uma grande dificuldade de travar um diálogo inteiro que fosse, um raciocínio claro entre o que líamos e escrevíamos. Foi então que percebi que a chance de eu me irritar era muito maior com a tecnologia do que sem ela. Se pessoalmente a conversa flui claramente, mesmo que tenhamos sempre a consciência como filtro de nossos pensamentos, e quase nunca me indisponho, à distância uma parafernalha técnica impede a concentração, a atenção, o carinho e a dedicação. Antes de tudo isso: impede a compreensão. Aí os filtros são outros, muito maiores, porque são físicos. Uma relação que em outras situações seria dialógica, ali (e o problema não era a pessoa, estou segura disso) não passava de uma sucessão de monólogos desconexos.

Foi então que, automaticamente, lembrei-me da ideia trocada com a Agnes no final da tarde. E veio um estalo! Radicalidade de desdém à parte, não é por perder a paciência no Messenger que o ser humano vai desistir de desafiar a técnica. Eu também não a descarto. O que pode acontecer é a busca por um software que reproduza melhor nossa interação face-a-face.

Era o que nos questionávamos Agnes e eu na conversa anterior: por que temos tantos programas, tantas relações virtuais e tantas redes, se há uma vida imensa lá fora? E por que temos sempre a necessidade de trocar informações em vários softwares diferentes?

Sem querer responder, cogitamos o que horas depois fez todo o sentido: mesmo com preguiça de aprender, queria usar o Google Wave com a esperança de que essa tecnologia, essa intervenção humana sobre o ambiente, me aproximasse mais das pessoas. É uma espécie de reinvenção das relações, para que retornemos a elas.

Mundo de ficção científica? Sim, "as transformações estão passando na nossa frente", disse minha sábia colega de trabalho. Stanley Kubrick - inspirado em outras referências, claro - foi muito feliz ao relacionar o fogo com a nave espacial em 2001: uma odisseia no espaço. Pois desde o manuseio das primeiras pedras estamos criando e recriando condições de intervir no mundo para aproveitar esse mundo.

Ainda que muitas das relações humanas sejam modificadas e até possibilitadas pelas tecnologias (das impactantes às particulares), o que buscamos sempre é a proximidade com o outro. É viver entre a intensidade e o distanciamento. Entre pensar no que falar e falar sem pensar. Entre agir sem previsão e calcular qualquer impulso. Um esforço cíclico e contraditório de dominação das próprias condições temporais.

É assim que Mario Benedetti, em Mass Media, torna-se apropriado:



De los medios de comunicación
en este mundo tan codificado
con internet y otras navegaciones
yo sigo prefiriendo
el viejo beso artesanal
que desde siempre comunica tanto



Não que tenha decidido não aprender a lidar com o Google Wave. Longe disso. Mas, devo reconhecer que nossa intenção maior enquanto gente que se comunica, independente do software, é não perder uma piscadela da fotografia que brilha na tela. Ou seja, não perder um momento sequer do outro.

Que bom que existem os abraços!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

sem paciência

A "paciência é a ciência da paz", disse o mestre de cerimônias. "Pois é..." - pensei, cética - "...e lá paz tem ciência?". Deixei passar, preferi enxergar as veias dilatadas e as gotas de sangue circulares. Preferi enxergar distorcido, como aqui dentro, do que me preocupar com o verbo que vinha de fora.

E hoje fico aqui pensando, de que vale tanta denominação. O que quer dizer a ciência da paz? Um método, uma teoria, um fundamento? Ou uma racionalidade discursiva? Tem que explicar? Se tiver, não quero. Não é essa paz que eu quero.

Portanto, quanto mais você se explica, se explica por pouco, se explica por muito, quanto mais desculpas tem que dar, quanto mais conversas semear, mais sua racionalidade vira retórica e, portanto, menos eu vou acreditar.

Perde o contato com o imediato, perde energia, perde força, perde segredo. A paz da paciência é "corazonal", diria Restrepo, e não científica.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

de novo e sempre

Poesia, de novo?

De novo e sempre. Há muito o que escrever em prosa, quando se vive em prosa. Há sensações, descobertas e suspeitas. Há vida em narrativa. Vida que já é narrada todos os dias, que está na feira, na rua, no ônibus e na galáxia inteira. Há experiências, lacunas, percepções e outras novas constatações. Vida que passa por terras de minério, terras de ferro e de sol. Há pessoas, animais, coisas, sinais, vento, água e sal. Há esperança e desencontros. Tempo e espaço.

Na prosa há tudo isso. Daí a necessidade de contar. Na poesia, porém, a vida ultrapassa a narrativa e vira sentimento seguro que não sabemos de onde vem. Pieguice desmedida? De novo e sempre.

Enquanto a vontade de narrar não vem, as semanas vão começando assim, com poesia dos outros.

Por Abel Silva, mais uma vez:


O amor é outra liberdade
Não é o susto da paixão
Não é um raio
É um espelho
Não é o medo da solidão

Uma paixão naquela esquina
Guarda um punhal em sua mão
O amor semeia, colhe, espalha
O amor divide sua ração

Uma paixão quando envelhece
Senta no cais com os olhos fundos
Quer viajar por outros mundos
Quer ver mais perto
Romper abrigos
Redescobrir perfil incerto
Surpreender velhos abrigos
E no terror da liberdade cuspir o anzol
O amor é outra liberdade

domingo, 1 de novembro de 2009

referência reflexivo-inspiradora II







O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Autopsicografia - Fernando Pessoa

referência reflexivo-inspiradora I







Meu poema é nas nuvens
Cada qual descobre
O que deseja ver

Significado - Helena Kolody




segunda-feira, 26 de outubro de 2009

o caminho daqui, pelas terras de lá




A primeira coisa que fiz hoje quando acordei foi averiguar o resultado das eleições presidenciais no Uruguai, realizadas ontem. Cerca de 2,5 milhões de pessoas escolheram José Mujica, também chamado de Pepe, da Frente Ampla, e Luis Lacalle, do Partido Nacional, para disputarem o segundo turno no dia 29 de novembro. Também foi recomposto o parlamento, com uma espécie de polarização acirrada das cadeiras da Câmara Baixa e do Senado entre esses dois partidos (e suas bases).

Classificado como ex-guerrilheiro, Mujica adotou o slogan: "con mochila o sin mochila, votá en Pepe". A mochila, para o povo uruguaio, é o símbolo do passado armado. O "comunismo" ainda deve assombrar. Ex-presidente dos tempos da abertura ao modelo neoliberal, Lacalle é o famoso "rouba mas faz" de lá. Faz planos de recuperar a economia do país estatizando a pesca, mas não faz muita relação do sistema econômico à crise mundial. Tem um apoio velado de Pedro Bordaberry, filho de ex-militar golpista que, graças aos resquícios da memória, não foi totalmente esquecido. Entre a centro-esquerda e a centro-direita, o país tenta conduzir seu futuro sem grandes expectativas.

E por que havia de me interessar pelas eleições presidenciais do Uruguai? A história é longa, mas me dá gosto em narrar.

Maio de 2001 - A primeira vez que saí do país o fiz com destino a Montevidéu. Uma viagem de faculdade, com um grupo disposto a passar frio e fome. Estudante das quebradas, arrisquei passar uma semana fora de casa com pouco mais de R$ 200,00 (quase uma fortuna!). Três dias no microônibus da UFG para ir, três para voltar. Pisquila dormindo na Serra Gaúcha e minha mãe rezando de Goiânia, para que Santo Expedito protegesse a turma. A poltrona do microônibus era estreita e o resultado foi uma longa dor nas costas. Já em Chuí, passamos uma tarde tentando resolver dois problemas: a entrada no país vizinho do Cleyton e da Renata, que esqueceram seus documentos em casa, e o aluguel do carro que nos levaria até a capital uruguaia. Com previsão de gastar no máximo três horas entre Chuí e Montevidéu, levamos quase 12h e o resultado foi uma noite pesada de sono no Hotel Colônia. Nunca me esqueci do nome desse hotel, que tinha piso de ladrilho verde escuro e branco e elevador com porta sanfonada de ferro.

A primeira vez em Montevidéu me pareceu deslumbrante. Aprendi logo a andar na avenida 18 de Julho e aprendi também que essa data era cívica para seus moradores. Conheci a Universidade Católica e alguma coisa da Universidade da República. Admirei a Cidade Velha, com sua arquitetura gótica, seus prédios com ar abandonado e suas feiras livres cheias de artesanato e artistas de rua. Um dia, procurando o Banco do Brasil, olhei para o alto de um prédio azul marinho e pensei: como será viver por aqui? Curiosidade que foi acirrada com o tempo e que me fez repórter. Todas as vezes que rodei pelo interior do Brasil ou pelos bairros de Goiânia, repeti a mesma pergunta.

Bastante perdida, lembro da caminhada na tarde fria pelo centro de Montevidéu, dos velhinhos que sentavam-se nas portas das casas no final da tarde e da assustadora Igreja Universal do Reino de Deus. "Até por aqui?". Lembro também que, na semana em que o Brasil oficializou o racionamento de energia chamado Apagão, aprendi a tomar água mineral com gás, pois a água mineral sem gás uruguaia era bastante salgada. Não cheguei a ir ao Porto, mas fui a uma boate que tocava P.O.Box "en español". Conheci meninas bastante imponentes - que nunca me esqueço - e rapazes de olhares bastante penetrantes - que também nunca me esqueço. Aqueles cabelos desgrenhados dos jovens e aqueles colares de pérolas das senhoras me atraíam muito: exemplo de charme pseudo-europeu que por muitos anos foi fixo na minha mente.

Apanhei para conversar. Não sabia nada de espanhol e, por isso, entendia nada além de "Sí, como nó?". E, ao dirigir a palavra a qualquer um, não sabia se arriscava o portunhol ou falava meu brazuca devagar. E morri de vergonha. Tanto, que a primeira medida tomada ao voltar para Goiânia foi efetivar a matrícula no Senac, nas classes de espanhol do professor... como era mesmo o nome dele? Aquele? Era um chileno de Valparaíso. Ah, não me lembro!

Depois da decisão de estudar espanhol, quem mais me influenciou foi a Andréa, que conheci um ano depois e se tornou minha amiga e professora particular. Argentina de Buenos Aires, me fez estudar muito mais do que o idioma: de Borges a Tomás Eloy Martínez, de Mario Benedetti a Velázquez, de Gabriel García Marquez a Saint-Exuperry ("en español"), de Valentina (sua sobrinha de seis anos que morava em La Plata e vinha a Goiânia vez ou outra) às quatro amigas novaiorquinas do Sex And The City (assistidas com dublagem e legenda em castelhano), do livrinho adolescente que falava de Santiago del Estero à densidade de Júlio Cortázar. Cinco anos intensivos de espanhol com a Andréa me renderam muito mais do que o sonho de um dia voltar ao Uruguai com a língua tinindo: me renderam o certificado pela embaixada da espanha (chamado de DELE) de que estaria apta a "hablar" e uma aventura real pelo Norte e pelo Centro-Sul da Argentina, pelo Aconcágua, pelo litoral do Chile, por parte dos Andes e pelos altiplanos da Bolívia, nos anos de 2007 e 2008.

Desde a primeira vez no Uruguai, descobri semelhanças entre os "gáuchos", os portenhos (que não são só argentinos) e os brasileiros (de todas as partes), principalmente no que é referente à história sócio-econômica e política dos dois países, que por muito tempo povoaram minhas comparações: febre aftosa em boa parte do rebanho para exportação, celeiro do mundo, neoliberalismo dolarizante, falsa-riqueza e falso-progresso nos anos 60 e 70, miséria dos 80 em diante, narcotráfico, prostituição infantil, gente saindo do país para trabalhar, campos de golfe e quadras de tênis nas áreas nobres das cidades, gente morando na rua porque não teve outra opção, educação popular, politização vinda do campo, Paulo Freire, Mario Kaplun.

Logo depois dessa viagem veio a notícia do Corralito na Argentina e a crise que arrancou também as esperanças uruguaias. A quebradeira de um vizinho respingou no outro, mas a esperança de se reconstituírem levou a consolidação de vários movimentos populares e também dois presidentes de esquerda ao poder: Nestor Kirshner e Tabaré Vázquez. Por aqui, as duas eleições de Lula seguiram o rumor esquerdista do continente, mas resultaram muito mais de um "processo" do que de uma reação.

Outubro de 2009 - Quanta coisa muda em 8 anos! O Hotel Colônia fica na Rua Colônia, mas estava tão escondido por detrás de uma porta de vidro que demorei a notá-lo. A avenida 18 de julho, que nos leva do mar até a saída do centro da cidade, é uma espécie de Anhanguera duas vezes maior e com duas vezes menos bancas de camelô (ou será que é o contrário?). Os prédios góticos da Cidade Velha foram revitalizados e algumas ruínas até refeitas, incorporando também os vidros e a modernidade do novo Palácio do Governo. Raquel, que trabalha em um projeto de saúde da família ligado à Universidade, lembra de como, alguns anos atrás, essa Cidade Velha era sinônimo de isolamento e perigo. Hoje, há restaurantes, livrarias, albuergues da juventude e gente caminhando apressada pelas ruas até tarde da noite.

Meu olhar também mudou. Os cabelos desgrenhados das moças eram os mesmos, mas dessa vez elas pareciam ter mais cor. Algo mais de Almodóvar, com bolsas azuis, botas vermelhas e tintas roxas nos olhos. A casa do bispo Edir Macedo não me pareceu tão funesta. E reconheci nas batucadas do Candombe o sangue negro que esse povo quer tanto recuperar. "Não somos só descendentes de europeus", me disse uma mulher na praça do Cine Plaza. A única coisa que não mudou foi minha admiração pelo olhar penetrante dos rapazes. Um deles, o Gonzalo, com um verde profundo, deveria olhar para todo mundo que chega a essa altura do texto. Desperta paixão! Batata que desperta!

A Montevidéu de 2001 me parecia mais charmosa. A de 2009, mais suja, nem tão bonita assim, só que muito mais real. O encantamento mudou e a forma de perceber as experiências também. Dessa vez, fui com duas amigas (e colegas de trabalho e companheiras de projetos) participar de um encontro iberoamericano de extensão universitária. Em uma semana de contato com pesquisadores e movimentos sociais de toda a América Latina, o encantamento ficou a cargo nem tanto das formas e das construções, mas mais pelas sincronicidades, pelos discursos, pelo que se estuda, pelas pessoas, pelo entusiasmo de saber que há chances de se fazer pesquisa "desde las prácticas sociales", pelo Juan Bordenave e pelo William Torres.

A fluência no espanhol ainda não está boa. Muitas vezes tive de pedir pra falarem mais devagar e o Martín lá do albergue cansou de rir da minha insegurança balbuciada. Mas, consegui fazer amizades passageiras em Villa García com as crianças do X.O. e escutar bastante gíria. Aprendi a chamar a Ana de "chamuchera" e "tanguera", depois de tanto ouvir o José e o Carlos. E me arrisquei a entrevistar gente da orla da praia até a praça 33 para saber quem eram os candidatos preferidos daquelas eleições.

Assim que cheguei, o taxista avisou: "Não sabemos em quem votar, são todos iguais". Na verdade, não são todos iguais, mas o sentimento de boa parte da população é de que eram todos iguais. Desmerecido, descrente e desorganizado, o cidadão médio uruguaio, assim como o de qualquer dos países "em desenvolvimento", não fazem questão de escolher seus representantes porque simplesmente não se identificam com o modelo de democracia que é vigente. O sonho de uma nova cidadania e um novo modo de vida vinha da Universidade e do bairro do quilômetro 16, mas faltava no resto da população, que não sabe se prefere renda ou educação, segurança física ou dignidade, saúde ou representação.

O taxista disse mais: "há muita gente saindo do país". Isso também temos por aqui, como parte das ilusões construídas, das "fábulas", como diria Milton Santos, que a globalização nos impôs. Mas, em sua conferência, o espanhol Tomás Villasante, desmistificou: "Agradecemos que o Rio levará as Olimpíadas de 2016, pois já não temos mais dinheiro". Quebradeira total. Crise mundial. E isso se respinga, sim, no ânimo das pessoas. Os movimentos, eufóricos, queriam sempre emitir palavras de ordem ao final das conferências. Lá fora, as pessoas desanimavam com o discurso político e não queriam, sequer, discutir a Lei da Caducidade, que protege policiais e militares que torturaram presos políticos nos tempos da ditadura militar.

Por que o Uruguai mudou duas vezes a minha vida?

Porque é sempre lá que me vem a chama da determinação, o rumo a seguir, o caminho da compreensão. É de lá que veio, dessa última vez, a opção pela pesquisa-ação, o retorno (ainda tímido) aos movimentos sociais e as pazes com a política - não-partidária e para a vida inteira.

E é por isso que ontem, 25 de outubro, me lembrei tanto de Gonzalo, Martín, José, Carlos, Raquel, dos professores e alunos de Villa García, dos moradores do quilômetro 16, dos pescadores de Punta del Este, do taxista, dos catadores de papel, do senhor engravatado que com ar de ressentimento me disse que o Banco do Brasil "se fué del país", do saxofonista que dormia na praça, dos garçons, daquela moça simpática que nos levou a conhecer o PIN, da senhora que chorava no cinema, da moça que levava um gato na coleira e de vários outros personagens. Em quem eles votaram e de que modo votaram? Fosse eu, votaria em quem? Fossem eles, por aqui, votariam em 2010 em quem? Que clareza temos ao ver a realidade alheia? E com que clareza devemos ver a nossa? De que modo percebemos o mesmo lugar, em tempos diferentes? E de que forma devemos incluir as percepções de hoje em nosso futuro?

Montevidéu, para mim, é sonho que não precisa ser real e cotidiano para fazer sentido. É lugar que devo buscar sempre que (ainda que com recordações) quero compreender o meu próprio território. "Más allá del sur", como dizia o cancioneiro, é a porta que se abre para a América Latina, a minha América Latina.


obs.: COPYLEFT - A foto que antecede o texto é da equipe de comunicação da Universidade da República e foi retirada de www.extension.edu.uy


terça-feira, 13 de outubro de 2009

em trânsito



Que a estrada se mova
mas não se perca




E que a próxima estação
- ou a próxima condição -
chegue logo
Tal qual uma cidade
apontando no descampado terreno

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

protagonismo negro - "de alma branca"


Olha aí, que cena mais tocante! O que mudou no Brasil, desde 1888? Antes dessa morena chegar, duas moças "branquinhas" e com sacolas nas mãos também fizeram pose segurando a corrente. E o pai delas foi quem fez a fotografia.

O rapaz protagonista desse retrato, cujo nome não lembro, anda pelas ruas de Paraty vestido de escravo e cobrando para tirar fotos. Ele se suja com carvão e usa calça de algodão surrado ao sol. Foi o que lhe restou. Quando conversa, faz questão de dizer que conhece o Daneil Filho e já fez "ponta" na Malhação. "Sou gente, pô". Cidadania atravessada pela estética e pelo discurso do estrelato. No dia em que o conheci, fique embasbacada. Não porque ele resolveu cobrar pelo uso da sua imagem (e, inclusive, se produziu profissionalmente para isso). Quanta gente por aí não faz o mesmo? Mas sim porque há pessoas interessadas em registrar esse momento tão raro em que seguram a corrente, sorriem e tripudiam da história, da dor e da tortura.

Como pode? Tiram sarro do próprio passado! Ou essa garota da fotografia é, por acaso, uma "portuguesinha"?

Meses depois, vejo a gata borralheira da novela das 21h, uma modelo de profissão, desfilando sorridente pelas passarelas do mundo e refletindo o protagonismo social reservado ao negro no Brasil mestiço. Um protagonismo de alma branca, adaptado, forçado. De hábitos refinados, ela não nega as origens ribeirinhas e a infância pobre às margens dos grandes lagos, mas também não recusa uma partida de turfe ou uma lagosta com vinho branco. Não que não possa desfrutar dos prazeres aristocrático-oligárquicos. Não é isso. Mas está muito longe das mulheres, das negras e das pobres do nosso território.

Fosse eu do movimento feminista ou do movimento negro, teria muitos motivos simbólicos para me revoltar com a Rede Globo - a mesma empresa que o "escravo" de fotografia sonha em ocupar, com seu charme e sorriso. Não sendo, revolto-me mesmo assim.

Penso no protagonismo dos negros. E me lembro da informalidade, da falta que fazem os direitos sociais, dos estupros legitimados, dos assaltos à dignidade, da Cinelândia, da Candelária, de Carandiru, do Parque Oeste Industrial, de Eldorado dos Carajás e de tantos outros cenários de barbárie. Lembro também dos quilombolas urbanos e das Universidades com sua recente polêmica de cotas acompanhada de opiniões hipócritas por parte dos "quase-todos-brancos". E fico pensando se essa Helena da novela, de fato, representa as pessoas desse país. Não, né?

Quando era Chica da Silva, Thaís Araújo já era uma protagonista. Mas, parece que a rainha do diamante, da vingança e do trambique não conta muito para a opinião pública forjada pela TV. O que conta é que Helena tem o coração dos puros e um galã da meia idade ao lado, clareando seu brilho de ébano. O que vale é que o discurso que não quer mudar resolveu ser politicamente correto para encantar essas mesmas pessoas que gostam de tirar foto com "escravos".

O Brasil da Casa Grande está aí e continua o jogo simbólico com sua Senzala. Ao som de uma bossa nova qualquer, vale ressaltar.

sábado, 26 de setembro de 2009

aquele velho esquecido

Para o corpo de Berenice
Ou o coração de Wall Street
Para o último tempo
Ou a primeira dose de tóxico
Para dentro de si
Ou para todos
Pra sempre todos emigram*

*Canto dos Emigrantes
poema de Alberto de Cunha Melo


Fecha os olhos, respira fundo, tapa os ouvidos! Viaja! Viaja em um mergulho interior, rumo ao desconhecido mais abundante: dentro de si.

Lugar quente, úmido, palpitante e sanguíneo é seu interior, aquele velho esquecido. Aquele espaço onde não há trégua e nem espelhos, palco ou caixas velhas, representações ou nomeações. Há, sim, emaranhados de nós, que atam e desatam conforme o tempo, o vento, a cor e a dor. Nesse ambiente fluído e espaçoso, fica tudo bem guardado, mas nada é escondido.

Viaja e saberá: que a aventura mais importante da vida é uma imersão. Não são estradas ou ares que nos seduzem, são os mergulhos para o núcleo da alma.

Viaja e garantirá que não há companheiro mais fiel que seu próprio desejo. E que identificá-lo perante a multidão não é tarefa pra um papinho na esquina ou pra um beijo roubado. É trabalho árduo de negociação com a rotina, com a auto-imagem e com as reflexões negadas.

A beleza, a sagacidade, a intriga e as rebeldias estão todas por dentro. Não há tumulto ou calmaria maior nos além-mares. Tantos casos são sempre mais delirantes quando se fecha os olhos. Quando se nota o que não foi desvendado, nada mais lá fora tem graça. As pessoas e suas explicações ficam pouco interessantes.

Viaja e enxerga mais que o horizonte! Nota a si mesmo e terá em mãos respostas breves, segurança mútua e calor natural. Para seguir com a vida exterior, saboreia primeiro sua força interior.

domingo, 20 de setembro de 2009

nada mais é como antigamente

Nem o tomate é o mesmo, está cheio de agrotóxicos. Nem o chocolate garoto, a fanta uva e o jeans surrado têm mais aquele gosto oitentista da infância. Não se fazem mais pães de queijo, empada e pamonha com aquele tantão de queijo dentro. E nem o café ralo e doce a vovó faz mais.

Não se fazem mais como antigamente: crianças, brincadeira de criança, brigas de criança. Hoje elas perguntam qual a profissão do pai do amigo e preferem as transações do banco imobiliário virtual.

Não se fazem mais os mesmos cavalheiros, os mesmos cavaleiros, os mesmos garçons e o mesmo "lord" inglês. Hoje parece que há uma preocupação maior em ser ético, quando na verdade não há ali um pingo de autenticidade. Não é como antes sequer a mesma malandragem, que jogava seu chapéu para o vento, em um clima romântico de sedução e boemia. Hoje os malandros, com suas camisetas Lacoste, usam água de cheiro industrializada e tentam parecer doces rapazes.

Não se fazem mais os mesmos causos, as mesmas prosas e o mesmo balanço. As conversas são cheias de informação, mas sempre regadas por visões superficiais sobre qualquer ato ou fato. As experiências foram sequestradas e "dessequestradas", mas não são as mesmas do mundo que se permitia ser visto muito mais com os olhos e com o coração do que com as lentes da técnica.

Não se faz mais a transcendência como antigamente, porque ninguém está disposto a confiar no que não conhece. Nem eu e nem você somos os mesmos, porque buscando ser sempre melhor, podemos reduzir essa esperança seguindo sempre o pior.

Não se faz mais qualquer coisa de antes. Porque o antes já passou e, uma vez que passou, não traz mais surpresa alguma. É verdade que nada será como antes porque esse antes está na memória, foi apropriado pelas lembranças e tem o gosto que queremos dar, da forma como idealizamos o mundo. E o mundo de hoje é real. E de tão real que é, fica sem graça.

tarde com Vinícius

Aquilo que não se diz, que se esconde de si, que não é bom lembrar sequer nos momentos mais solitários, Vinícius de Moraes fala nesses dois poemas aqui relacionados. Um de muita decepção, outro de muito sonho. Um de plena realidade, outro de puro idealismo. Os dois lados de todos nós. E tudo pode valer nessa carta. E tudo pode estar nesse suspiro. Inspiremo-nos!


A carta que não foi mandada

Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor

Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais
É, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei, nem lembro mais


Ai, quem me dera

Ai, quem me dera terminasse a espera
Retornasse o canto simples e sem fim
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim

Ai, quem me dera ver morrrer a fera
Ver nascer o anjo, ver brotar a flor
Ai, quem me dera uma manhã feliz
Ai, quem me dera uma estação de amor

Ah, se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem casais

Ai, quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afim
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai, quem me dera ouvir o nunca-mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E, finda a espera, ouvir na primavera
Alguém chamar por mim

domingo, 13 de setembro de 2009

vai, vento!

Vai, vento, assopra! Segue seu rumo, assovia, percorre os sentidos, os caminhos escondidos e as trilhas atalhadas. Vai, vento, vai! Seus desejos vão voando, com seu grito em revoada, muda a vida de quem segue, inspira os olhos de quem sente.

Vai, vento, gira! Seu barulho em encruzilhada dá sinais silenciosos de que a vida que persegue está lá bem adiante.

Vai, voa, corre! Longe, livre, belo e invisível. Vai e fala o que me espera, dando notícias bem de longe. Chega do Oeste com a incerteza de que amanhã estará no Norte. Sem sentido e sem razão, segue em frente a acompanhar a passarada que passou do topo ao pé do morro alto.


Vai, perpassa, vento, os riscos! Os riscos que a alvorada oferece, em respingos, úmida, na folhagem e no jasmim. Vai levar o cheiro e as cores, a luz e os ruídos de quem nasce, de quem chega, de quem parte e de quem volta. Vai e voa para onde quiser, para onde o conduzirem, para onde estivermos todos. Para sempre, para nunca mais.

Vai e desperta, vento, as tramas tais, alegorias infinitas que pelos seus braços são levadas! Reúne as histórias das pessoas, vento, com o gosto doce de seu sopro. Amores, dores, decepções e descobertas: junta tudo, depois espalha e lança mão do que o espera.

Vai, vento, vai, ser feliz longe de mim!

sábado, 5 de setembro de 2009

cadência


Vai e vem. Vem e vai. Movimento onírico das moléculas irrequietas. Onda singela, portadora de sons e imagens. Ora sons, ora imagens. Magnetismo natural. Energias incandescentes. Modulação mediana. Sentido em relevo. Revoar de quadris. Suspirar de ares. Sensações mergulhadas. O envolver do mar. Vai e vem. Vem e vai.

ímpeto

Mexia os dedos rapidamente, tentava estalar as juntas, parava. Mordia os lábios até arrancar uma fina pele na boca sangrenta. Parava. Respirava fundo, tomava água, mexia os dedos dos pés freneticamente. Parava. Enrolava os cabelos, piscava, espirrava. Na sua cabeça uma sequência de imagens fazia o efeito contrário ao da meditação, tantas vezes indicado para casos como aquele. O desespero passava pelos olhos, pela mente, pelas lembranças. Enquanto isso, seu corpo se manifestava inquieto e absorto em uma energia vil.

Foi quando decidiu. E partiu fumegante três andares de escada. Atravessou a rua fora da faixa de pedestres, com o sinal verde, os carros passando, as pessoas resmungando, sem sequer notar. Passou pela banca de frutas, roubou uma goiaba e mastigou-a num ímpeto, enquanto alcançava a próxima quadra.

Olhou para o relógio, não via que horas marcava. Revirou a bolsa, não encontrou o bilhete. Desesperou-se ainda mais. Meticulosa, não acreditava que resolveu seguir. Havia pensado muito, mas parecia-lhe mais um daqueles impulsos que tanto acusava-se de dar, que tanto evitava e tanto perdia tempo racionalizando sobre "tê-lo ou não".

Sem fôlego, parou sob a mangueira, enquanto o próximo semáforo indicava a cor amarela. Estalou novamente os dedos. Pensou em voltar. Comprou água mineral do ambulante que percorria as pessoas e os carros. Continuou, a passadas cada vez mais largas.

Atravessou a praça. Outra faixa de pedestres. Outro quarteirão. Outro bairro, numa caminhada sem fim.

As cores em sua vista eram cada vez mais turvas e os sons percorriam seu cérebro com a mesma velocidade de seu sangue. Buzinas, conversas, sons mecânicos, construção, motores, fuligem, pastilhas, grafite, fossa, cheiros fortes, comidas e transeuntes compunham seu delírio bastante concreto para aquela tarde nublada e úmida de segunda-feira.

Enfim chegou ao seu destino: uma floricultura de esquina. Um sobrado rococó, com porta de madeira e tinta seca em tom pastel descascada no muro. Pediu melissas e flores do campo envolvidas em fita branca. Espirrou. Espirrou. Com as narinas irritadas, desmaiou.

domingo, 30 de agosto de 2009

vale para todos os tempos

"Não confio em reformulação democrática se pequenos gestos como o de permitir o encontro de presos com seus familiares e amigos não sejam lealmente observados. Antes de anistia, que a consciência e a conveniência política estão pedindo, é preciso restabelecer o direito ao abraço, ao beijo e à conversa afetuosa dos que estão cá fora com os que estão lá dentro".

Carlos Drummond de Andrade em A cor diferente do sábado, crônica publicada no Jornal do Brasil de 22 de março de 1979.

sábado, 29 de agosto de 2009

suspirando por aí

Apaixonar-se. Pela vida. Pelas pessoas. Pelas energias. É muito bom. Tanto, que não consigo negar, por mais que tente. É abandonar os racionalismos forçados e deixar-se estar despudorada, à flor da pele, deixar-se levar. Como antes. Como sempre. Assim, cada dia fica maravilhoso, cada chuva é de esperança, cada contato com o outro vira um olhar estreito para o amanhã.

O "tempo de absoluta depuração", como diria Drummond, fica para trás. Agora é hora de sorrir e, mais ainda, de sentir. Sentir-se. Sentir-me. Sentir-nos. Todos nós, em nossas lutas, nossos desejos e nossas decepções.

É bom estar apaixonada. Melhor ainda é perceber que esse estado de espírito não passa nunca e pode ser despertado muito facilmente - por todos e todas. Se for olhar para trás, pelo menos cinco vezes me senti apaixonada na última semana. Pelo menos cinco pessoas totalmente diferentes me despertaram esse prazer contemplativo que é a paixão. Piegas? Forte? Extrema? Sim. A paixão em tempos de racionalidade não faz parte do cardápio. Faz doer. Todos evitamos. Mas, é sensação de plenitude que nunca fica longe. Ou, ao menos, nunca deveria estar.

Hunf!

Obrigada, gente! Gente nova e gente velha que está nessa vida, por me fazer passional, com todo o meu espírito e todo o orgulho do mundo. Obrigada quem me faz (ou fez) aprender a viver, aprender e viver. Quem nunca mais vi e quem ainda virá. Sentir-me apaixonada é isso: agradecer, valorizar, estar pronta para mais outra leva de emoções. Com vocês, é claro!

cimento, cola e outros

- Olhe para essa parede. Como ela foi construída? Há tijolos e cimento, não?

- Sim!

- E o cimento é que gruda um tijolo no outro, certo? Então, o cimento é que mantém a estrutura da casa. Não é? Não fosse o cimento, a casa não estaria de pé e as pessoas não estariam nela vivendo.

(silêncio reticente)

- Assim é também a ideologia. Ela é o cimento da estrutura, que faz com que a base (economia) se mantenha unida à superestrutura (política, cultura, religião, artes, senso comum, poder coercitivo). Então, quando digo que o cimento é a ideologia, de que ele é feito?

- Do discurso dominante.

- Sim. De quem quer manter a estrutura funcionando. Nessa casa, vivem todos os tipos de pessoas, as que concordam como o modo com que ela foi feita (a maioria) e as que não concordam. As que não concordam vão tentar mudar esse cimento, sempre.

- E vão, às vezes, ser expulsas, ignoradas, retaliadas ou ridicularizadas, pois o cimento faz parte delas, as fez também, de certa maneira...

- Será? Não, o cimento não as fez. Mas, o cimento há muito tem se tornado cola. E cola é plástica, é pegadiça e, dependendo do que é feita, pode nunca mais desgrudar.

- O cimento virou cola... essa eu gostei!

- Entendeu, querida, o que é ideologia no mundo de hoje?

(...)

Radicalidade. Foi o que senti, estando ali. Que, por mais que o mundo fosse contraditório, por mais que todos nós tenhamos nossas incoerências e nossos desmandos, aquela pessoa se mantinha, de alguma forma, bastante igual ao que sempre foi. Não atualizou seu discurso? Parou no tempo? Ou experimentou a radicalidade, de fato, como diria Paulo Freire? Aquela radicalidade do amor, de quem reconhece seu papel no mundo, escuta os outros e compreende, mas não muda o tom do pensamento. E, assim sendo, o que condizia para um mundo de trinta anos atrás, também corresponde ao hoje, com os sofrimentos e as alegrias dos tempos atuais. De cimento para cola, certamente. E a lição, depois de três horas de conversa foi uma: fazemos parte de um projeto maior e, por isso, de cimento e cola, podemos transformar ideias e comportamentos em outro fluido. Geleia de uva, cobertura de chocolate, ayuaska, chá de coca, babosa, urucum, jatobá...

(...)

"Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer. Que eu não mudo de opinião".

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

ECT. do processo criativo

Nunca. Foi. Tão. Suado. Escrever. 15. Páginas. Exausta. Estou.
Morta. Fraca. Boa. Noite. Até. Próximo. Artigo.
Por hora. Já. Atrasado. Muito. Tal e qual. O sono.

sábado, 15 de agosto de 2009

metodologia

Não prezo a neutralidade. Mas, me afastei para olhar. Olhar, olhar, olhar. Vasculhar. Mexer em feridas, em restos guardados, vivências inacabadas.

Por enquanto, me silencio. E espero com relativa calma o amanhecer, com seus sons tão leves quanto os primeiros raios solares. E aprendo a gritar menos, respeitando minha própria respiração. Com o orvalho da madrugada, pode vir também a provocação, a reflexão, o conhecimento. Silenciosos, sempre.

O que quero? Evitar viver hoje, para experimentar completamente amanhã; falar quase nada agora, para dizer tudo o que andei pensando. Amanhã, depois de preparada. O que busco? A tal palavra verdadeira, que não está descolada da conduta. Mas não para deixar de reagir, para aderir. Sim para refletir e, ao refletir, provocar de fato, ainda mais. Para todo o sempre!

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

esquizofrenia da orientação, da cópia, da educação

Imagem impressa em um livro com tradução datada de 1995:

Um recorte escuro, de cenário obscuro. Mesa, cadeira, objetos esparsos. Ao fundo e sem detalhes, uma silhueta, sentada. Sua sombra, ao contrário, é nítida. O lugar poderia ser um escritório ou um estúdio de rádio improvisado. Sobre a mesa, microfone, parede com feltro ou espuma, ventilador. Um clarão ao fundo.

A percepção melhora: é um homem com roupa de militar, de fato sentado, com um bloquinho de anotações no lado esquerdo e o tal microfone à direita. Parece calar-se. Pode vir a falar. Abaixo da fotografia, uma legenda: "agenciamento da palavra de ordem". Imaginei? Ou as palavras me induziram a imaginar?

Logo abaixo, algo sobre a ordem:

“A professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela “ensigna”, dá ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de significações primeiras, não são a conseqüência de informações: a ordem se apóia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é redundância. A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado – sujeito da enunciação etc.). A unidade elementar da linguagem – o enunciado – é a palavra de ordem. Mais do que o senso comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade de abominável que consistem em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem. A linguagem não é feita par que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. (...) As palavras não são ferramentas; mas damos às crianças linguagem, canetas e cadernos, assim como damos pás e picaretas aos operários. Uma regra de gramática é um marcador de poder antes de ser um marcador sintático”.

Não, não imaginei! Era, de fato, a representação do totalitarismo.


Inspiração/Citação: Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia”. Tomo 4. Vol. 2

terça-feira, 11 de agosto de 2009

eu, me, mim, comigo

Pronomes pessoais são intensos e contribuem para os atos de lembrar. Usar o verbo em primeira pessoa é como olhar para a rua estando no parapeito da janela: considerando a cortina, a vidraça, a poeira, o que comi hoje, as boas novas que recebi e o humor que me acometia quando a banda passou, lá fora. Falar a partir de mim, em tom de pronome reflexivo, impede de pensar em “algo” ou “isto”. Me faz esquecer o que é neutro (aliás, o que parece ser neutro, mas não é): a terceira pessoa. Por isso, é com fluência que me sai o “eu”.

“Eu” de primeira pessoa, de ponto de partida próprio e de consideração de todas as vivências abstratas e concretas que se possa ter. Optar pela primeira pessoa é dizer com afeto e – por que não? – com parcialidade. Afeto que diz respeito às dúvidas, à existência, à busca por respostas sobre angústias comuns, enfim, ao ato de investigar. Por que não? – repito.

domingo, 9 de agosto de 2009

decupagem da lucidez

Quem fala:

Estamira sem carne, Estamira invisível vê e sente as coisas tudinho. Por isso que eu sou Estamira mesmo, né? Tem vez que eu fico pensando: mas eu não sou um robô sanguíneo, eu não sou um robô! A culpa é do hipócrita, mentiroso, esperto ao contrário, que joga a pedra e esconde a mão. Nunca mais encostarás em mim! Olhou para os pés de coqueiro e disse: isso é que é o poder, isso é que é real.

Dominação:

Me trata como eu trato que eu te trato. Me trata com o teu trato que eu devolvo o teu trato. Não adianta. Ninguém e nada vai mudar meu ser. Eles está pelejando pra ver se atinge uma coisa que se chamam de coração meu ou então a cabeça. Eles estão fudido!

Aprendizado:

Vocês não aprendem na escola, vocês copiam! Vocês aprendem é com as ocorrências. Tenho neto de dois anos que já sabe disso, que ainda não foi na escola copiar mentiras e hipocrisias charlatais.

Liberdade:

A dra. me perguntou se eu ainda estava escutando a voz que eu escutava. E eu escuto as coisas, fico escutando as vozes dos astros e fico pensando: como é que eu sou lúcida? Eu falei pra dra. Alice: minha cabeça tem hora que dá choque. Não dói não, dá agonia. Dá choque. Bate igualzinho onda do mar. A dra. passou remédio pra raiva. (risos) Eu fiquei muito decepcionada, muito triste, muito profundamente com raiva de ela falar uma coisa daquela. E ela disse ainda sabe o quê? Que deus que livrasse ela, que isso é magia, telepatia, a mídia e o caralho. Porra, pra quê, porra? Ela me ofendeu demais da conta aquele dia. Ó o retorno, 40 dias. Presta atenção nisso. Olha, e ainda mais: eu conheço médico, médico, médico mesmo, direito. E ela é copiadora. Eu sou amiga dela, eu gosto dela, eu quero bem a ela, quero bem a todos. Mas ela é copiadora. Eles estão fazendo sabe o quê? Dopando, quem quer que seja, com um só remédio. Não pode. O remédio... quer saber mais que Estamira? Presta atenção. O remédio é o seguinte: se fez bem, para, dá um tempo. Se fez mal, vai lá e reclama, como eu fui três vezes, na quarta vez que eu fui atendida. Entendeu? Mas não quero o mal deles não. Eles estão copiando. O tal de Diazepan então... entendeu? Se eu beber Diazepan... se eu sou louca, visivelmente, naturalmente, eu fico mais louca. Entendeu agora? O tal de Diazepan... Não, eles vai lá e só copeia, uma conversinha qualquer e só copiar e tó... Ah, que que há rapaz? Isso não pode. Como é que eu vou ficar todo dia, todo mês, cada marca e eu vou lá apanhar o mesmo remédio? Não pode, é proibido. Entendeu agora? E eu não estou brincando, estou falando sério. E eu ia devolver a ela o remédio, pros viciados deles. Toda coisa tem limite, esses remédios são da quadrilha, da armação do dopante.


(Fragmentos sensíveis, fortes e verdadeiros, mais ou menos na íntegra, indicados para momentos de reflexão. As opiniões são de Estamira e foram retiradas do filme homônimo de Marcos Prado. Não sei ao certo o porquê, mas essa é a quarta ou quinta vez que me emociono com a história dessa mulher, heroína real e sem ilusões: velha conhecida, deveras manjada, mas sempre com algo mais a dizer por meio desse momento congelado que virou película).

lembrando de Abel Silva

O que penso é que Abel Silva, nas composições abaixo, não fala pura e simplesmente de amor. Ele está sempre às voltas com a liberdade, a fala, a voz, o poder de pronunciar-se. Por isso tenho lembrado tanto de seus versos. Porque antes de refletir academicamente sobre sujeito, autonomia, cidadania e liberdade, quero sentir - e experimentar - o que é tudo isso. E isso é soltar a voz.


Alma

Há almas que têm as dores secretas
as portas abertas sempre pra dor
Há almas que têm juízo e vontade
alguma bondade e algum amor
Há almas que têm espaços vazios
amores vadios, restos de emoção
Há almas que têm a mais louca alegria
que é quase agonia, quase profissão
A minha alma tem um corpo moreno
nem sempre sereno, nem sempre explosão
Feliz esta alma que vive comigo
que vai onde eu sigo o meu coração


Jura Secreta

Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que não roubei
A jura secreta que não fiz
A briga de amor que eu não causei

Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que eu quero me suprime
Do que por não saber ainda não quis

Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega é o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri


Liberdade

Fernando Pessoa


Ai que prazer.
Não cumpir um dever.
Ter um livro para ler.
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente matinal,
como tem tempo
não tem pressa...

Livros são papeis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta.
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fanha, José e Letria, José Jorge (org.). Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer. Cascais: Ed. Terramar, 2003.

domingo, 2 de agosto de 2009

"foi um rio que passou em minha vida...

... e meu coração se deixou levar!"


O ciclo fecha, a fase passa, a vida segue. E você abre as cortinas, pensa bastante, repensa, respira e decide. Sente a mudança. Muda de idéia. Tanta coisa que até a noite anterior estava estanque, certa, estagnada e definitiva, hoje não faz o menor sentido. Um turbilhão que transborda o espírito. Um olhar diferente para o de sempre. O sol bate pela manhã nos galhos das árvores e revela nesse porvir que o tamanho da ilusão foi também o tamanho do sonho.

(Não, não é preciso, assim, parar de sonhar. Basta apenas acordar, virar para o outro lado, sonhar de novo, com algo que não seja o mesmo).

As roupas velhas saem do armário. Os livros amarelados descem da estante. Os objetos pouco lembrados saem da caixa de papelão. E tudo ganha outra cor, outro tom, outro recorte. Não basta mais dizer por dizer, fazer por fazer. Tem de viver verdadeiramente o que se julga e se preza. Por isso é que a opção pela mudança se faz. O que se nega é a repetição, o continuismo, a escravidão das próprias idéias.

Os lugares de antes servem agora para fazer valer as coisas de amanhã. Aquelas praças de antes, bem ou mal vividas, chega! Da mesma forma, o sabor: de costumeiro passa a surpreender. É chegada a hora. Que bom! Lá pelo meio dia, velhos discursos recebem um não. Costumes contraditórios ficam mais que nunca contraditórios. E é tudo tão claro... como nunca!

A vida, ah, a vida... a vida não é da coletividade, da decisão conjunta organizada pela racionalidade. A vida pode ser também da individualidade, do que reclama o sentimento, do que é da vontade, da sinceridade. E se antes isso pouco importava, hoje, nesse sol escaldante, é a única força a ser movida. Jogar diante do grupo? Ter um grupo? Exigir direitos para esse grupo? Não. A saciedade virá pelos limiares, pelo próprio rompimento. A atitude particular da transparência e da honestidade dão outro toque para "o ato de respirar conjuntamente" que Guattari um dia chamou de "conspiração".

Novos olhares. Sim para os novos olhares, para as novas interpretações e percepções! Sim aos sentimentos pouco escutados, guardados, sufocados, desvalorizados diante do movimento das causas tão perfeitas e tão quadradas!

Saudades? Não. Nada deixa saudades, tudo está a recomeçar. Sem as sucessivas incoerências, é bom ressaltar, e com uma leve esperança. Sob a perspectiva de que uma porta se fecha, outra janela se abre, a poeira se esvai, os olhos piscam velozes, os calos são ressaltados, os sinais do tempo também. E o aprendizado não caminha mais sozinho, sem que seus impulsos, seu coração e sua mente o acompanhem.

É tudo uma fase, um ciclo, água do rio que corre, um coração que se deixa levar.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

inspirar, transpirar, transparecer

Encasquetei com verbo faz tempo: ação que fica no ar e, às vezes, termina em "er" ou "ir". Ação que pode ser do ontem, do hoje, do amanhã, do nunca, do sonho; concreta e também metafísica.

E no princípio fez-se o verbo, disseram alguns. E o verbo do princípio nasce da respiração, da captação, da inspiração. Surge do movimento de buscar o ar, a luz, o calor, a idéia, a vida, a vitamina, um suplemento qualquer. E depois disso, vale ressaltar, num rompante do agir, que é bom mesmo transpirar, exalar, expulsar.

O que sai? O ar. A vida. O mau da vida. O bom da vida. O que se aproveita. O que se remói. O que trituramos para criar, adaptar, reter ou distribuir. Transpirar é ação do devir. É movimento de entrega. Água, lágrima, suor, excrementos quaisquer: tudo sai com o transpirar. Às vezes até o que não se quer, se transpira e... tsc tsc tsc, deixa, vai, fez está feito!

Mas há algo que fica no ar. Ainda que se capte, se guarde e se exiba. Algo que paira involuntariamente, independentemente. Algo está no agir, mas ultrapassa os limites da consciência e, por isso, nem sempre desperta. Ou melhor, desperta, mas não se aceita; aceita, mas não se reconhece. E isso que fica no ar também é verbo, é impulso, é linguagem e comunicação. É ação de transparecer: tentar esconder, não conseguir. E é nesse momento que a alma aparece, desnuda, envergonhada, com todas as suas sombras.

Transparecer é intermediário. É o que se reduz aos gestos. O que ilude. O que se crê poder esconder. O que, ao mesmo tempo, se escancara. Transparecer é desajeitar, lutar contra, pouco ou nada reconhecer, desorganizar. É o anti-verbo do discurso. É gesto para anti-movimentos. É dizer demais, até pensando que não se diz. E a ação da transparência fecha o ciclo.

E tudo começa de novo, graças à oponências e à complementação: transpirar, transparecer. Movimentos de revelar e esconder que acabam por impulsionar, para fim do papear, o começo dessa ação, o inspirar. Quem inspira está a receber o que é exalado, o recado que se quer, mas também o que é revelado - por trás da cortina e à meia luz - o desejo que se quer, mas não se pode.

É como a síntese, só que ao contrário.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

enquadrados

"Ado-A-Ado
Cada um no seu quadrado"
(autor?)

O mundo é redondo? Não, o mundo é quadrado. Feito de retas, bem retas, tão retas que quem tenta desviar um pouco - criar uma curva, ainda que pequena - é achatado entre as vértices. O mundo não aceita nada que não seja um quadrado. Em quadrados. Enquadrado. O mundo enquadra. Emoldura. Emoldurece. Adoece. O mundo formata e divide a vida "em caixinhas, todas elas quadradinhas". E se sua vida não é essa sequência de ângulos retos, não há sobrevivência que se preze, não há amigos ou inimigos, não há conveniência, não há utilidade.

A Terra se fez quadrada, cheia de regras. Orientações de como seguir. Normas de como obedecer. Imperativos de como mandar. Silêncios de como sobreviver. Atos de como estuprar. Demandas de como fingir. Indicações de como ser correto. Retidões de como sentir, sofrer, viver, sobreviver, trabalhar, criar, comer, correr, responder. A Terra não cai no espaço como uma maçã cai da árvore, puxada pela força gravitacional. A Terra gira quadraticamente, como um dado, sempre de um lado a outro, na sequência exata, num movimento energético medonho, indicando os números de um a seis, fazendo seus jogadores apostarem tudo o que têm num resultado inútil.

O planeta é quadrado como os caretas, como os hipócritas, o PCdoB, o DEM, a TFP, Bush, Fidel, Stalin, JK, Getúlio, UDN, Carlos Lacerda e quem mais fez-se pela força (política, coercitiva ou simbólica). O planeta é quadrado como os legalistas, os moralistas, os que não permitem desordem, os que exigem respeito. O planeta é para os bem... sucedidos... todos quadrados!

Quadrado, como um dado, como a lente dos meus óculos, como uma caixa, um pacote que sai quentinho da fábrica: manufaturado, repetitivo, cansativo, simulado, formatado, irreal. Esse mundo em que vivemos é isso. O resultado do que fazemos todos os dias pelo bem estar social é isso. A soma do que caminhamos e construímos para nossas vidas ressentidas e medíocres é isso: um belo de um quadrado.

Não, Cartola, apesar de triturar nossos sonhos tão mesquinhos, o mundo não é um moinho. O mundo é um quadrado. Ado-a-ado, cada um no seu quadrado. O mundo que não é da vida, mas sim das instituições, é como o refrão do funk pouco melódico: segregante, segregado, individual, cada um com sua vida, com suas retas, com seu ponto de vista, com suas fragilidades e seus poderes. E ai de quem desafia esse mundo. Ai de quem não respeita o pai, o chefe, o pastor ou o professor. Ai de quem se embrenha pelas curvas. Sai da linha. Sai da reta. Sai do enquadramento. Fica fora de foco. Fora de ordem. Fora da lei.

Não se pode sonhar com um mundo redondo (ou hexagonal ou triangular ou seja lá o que for que não tenha retas tão certas!). Se pode esperar, no muito, um planeta retangular e, assim, disfarçado. Bem disfarçado! E apagado, anestesiado, respeitoso, mentiroso, cheio de meio termo, meias palavras, verdades pelas metades, falsidades em linha reta. Tudo muito inconstante, inconsistente e frio, feito cubos de gelo.

terça-feira, 21 de julho de 2009

manifesto para a renovação particular do movimento tenentista

Não quero abrir crédito no Banco, pagar mensalidade de clube ou plano de saúde, matricular meu futuro filho em escola particular e sequer vou comparecer à próxima festa que a CUT oferecer - com direito a cerveja e a banda de pagode financiadas pelo FAT. Não é isso que eu quero. Não vou lançar-me candidata e nem fazer conchavo. Não estarei lá, na próxima marcha simbólica ao Congresso. Não. Eu quero é reativar o Movimento Tenentista. Ou então a prática dele, de reagir ao imposto.

Eu quero é ter autonomia. Mesmo que essa beire o desrespeito. Por que não? O que eu quero é desafiar o destino e saber se ele é capaz mesmo de me fazer temer o futuro, temer o desemprego, temer o fim do status quo, o fim do salário, o fim das metas certas! Eu quero caminhar pelo curso contrário do rio, mesmo, como num sonho juvenil, e desobedecer. Desobedecer os civis, os militares, os políticos, os intelectuais, os religiosos, os artistas e os astros. Revirar as regras que fizeram pra mim e que sequer me consultaram para enquadrar-me.

O que quero é manifestar a livre expressão do pensamento, ops, do desrespeito, falar o que penso e ter o direito de arcar com as consequências disso. Se nada do que está posto me representa, não quero o que é imposto. Eu quero é desafiar!

segunda-feira, 20 de julho de 2009

domingo, 19 de julho de 2009

conto de fadas

“Ouve a declaração, oh bela
De um sonhador titã
Um que dá nó em paralela
E almoça rolimã
O homem mais forte do planeta
Tórax de Superman
Tórax de Superman
E coração de poeta”
Chico Buarque, A Bela e a Fera


O professor do século XXI tem de ser forte, racional, esperto, ter domínio dos conteúdos e ser criativo o bastante para aplicar esses conteúdos. Tem de preocupar-se com a escola, com a comunidade e com o que está além dos muros: a sexualidade, as relações de poder na família, as drogas, as crises financeiras, o meio ambiente, a diversidade etc. Não pode parar, tem de reciclar-se sempre, saber das notícias e dos efeitos da taxa selic nas prateleiras do supermercado. Tem de ser um verdadeiro super-herói, para construir e desconstruir sua prática todos os dia.

O professor de hoje tem salário baixo, muitas turmas pra cuidar, mas também tem sempre de olhar para seu aluno como se fosse único. Tem de ouvi-lo e, caso esse não queira assim de imediato pronunciar-se, deve saber como estimulá-lo. Tem de agregar e nunca excluir. É pai, é mãe, ensina a comer, a lavar as mãos e também a ler mapas. Esse profissional da educação, no início do novo milênio, também tem de ser sensível, como um poeta. Tem de ser inteligente emocional e estar pronto a acompanhar o aluno em seu ritmo frenético de descobertas. Ler literatura, ver novela, conhecer Harry Potter, ouvir as músicas da moda, saber que existe moda e saber também interpretar todos os ícones do seu cotidiano (e do cotidiano do aluno). Tem de conhecer o lead de um texto jornalístico, pois essa modalidade de escrita anda por aí, caindo em vestibulares.

O professor do futuro (afinal, o futuro começa hoje!), tem de ser rápido como um videoclipe, perspicaz como uma campanha publicitária e nunca duvidar do que um hipertexto pode fazer. Tem de saber construir uma lauda radiofônica, pois a qualquer momento a caixa de som e o microfone chegam à sua escola. Não pode ter medo de apertar botões, nem de falar em linguagem binária, nem de fazer decupagem de vídeo ou procurar o melhor enquadramento para aquela imagem.

O professor, no Brasil, há pelo menos 14 anos, tem de ser reflexivo. Tem de alfabetizar, sem que seu aluno decore que "eva viu a uva" e tem também que lembrar os 45 anos de golpe militar, de forma crítica e consciente. Como na música de Chico Buarque, o professor tem de ter “tórax de superman e coração de poeta”, para nunca esquecer que é sujeito, que seu aluno é sujeito e que há em suas mãos uma tarefa crucial: formar para a vida em sociedade, para a cidadania local, global, glocal, interplanetária.

Calma! Isso não sou eu quem estou dizendo. É política pública, prevista em relatórios internacionais como o Delors (distribuído pela UNESCO no começo dos anos 90) ou recomendada por cartilhas como as do Banco Mundial (que, também na última década, tem sugerido certa conduta aos países mais populosos do mundo, principalmente no que é referente à Educação). No Brasil, desde 1995, programas de formação continuada a distância (o novíssimo "Mídias na Educação", aham, por exemplo) e índices de avaliação de desempenho (como o Ideb, aquele da propaganda) cumprem bem esse papel de cobrar, de cima pra baixo, a existência imposível desse profissional perfeito.

"Tórax de superman e coração de poeta" foi a melhor definição que encontrei até agora. Quem tiver outra, favor indique-me!

(Tudo bem, isso é empolgação de primeira viagem com os estudos - empolgação que havia sido perdida, mas que aos poucos vem voltando. Mas é que realmente revolta! Ou não? Ah, revolta!)