quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

todo mundo sabe, mas quero repetir

Cerveja, perfume, óculos, medicamentos, ópio, flores, cortinas, seda, eletrônicos, poesia, corpo, pele, alface, rúcula, vinho: a tudo podemos fazer descer "goela abaixo". Consumimos para sobreviver, mas, também, para ter o que dizer ao outro. Para prosseguir com o tédio que nos aplaca e nos faz exigir reconhecimento alheio.

Os “esclarecidos”, por exemplo, consomem músicas, filmes e livros, fazem “ranking” no início do ano com os “top dez” localizados nas prateleiras. Contudo, não chegam a se questionar do esquema de distribuição desses “bens”, nem da forma como foram produzidos. Aliás, até se questionam, mas não julgam, assim, tão importante. Isso nem dá nos noticiários! O que importa é a trilha, o verso, a trova, o posicionamento dos atores, a semiótica, a mensagem subliminar. O que importa é a sensação causada e o poder da fruição. Isso é que gera debate.

Os “alienados”, por sua vez, consomem carros, motos, vestimenta, os próprios corpos, os outros corpos, pó e tradição. Muita tradição, aliás, para quando se arrependem das investidas. E trocam as orgias pelas fraldas, pelas alianças, pelos contratos. Em verdade, todos estão usando seus próprios limites para não se entregar à degradação. Mais sinceros do que os “esclarecidos”, não enxergam outra possibilidade de existir que não seja para competir com o irmão, o primo ou o vizinho, a partir do próprio ato consumista. E isso volta e meia significa "estar bem", "sorrir", "alcançar a perfeição".

“Esclarecidos” ou “alienados” também se dividem em categorias “A”, “B”, “C”, “D” e “E”, de acordo com as pesquisas do Censo, a renda vencida no final do mês, as contas a pagar ou o que querem ostentar. Aí é quando as prateleiras também os escolhem, moldam seus gostos e os fazem ter assunto na mesa do bar, conforme o que desejam e o que executam.

"Eu sou a coisa, coisamente", diria Carlos. E, no mais, é isso.

Vou ali mascar chiclete!

domingo, 16 de janeiro de 2011

adaptando livremente António Machado (para vidas paradas)


"Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar"


Guardava uma leve mania de se desfazer, perante estranhos, perante próximos, tanto fazia. Desorganizava sua história, sua força, seus sentimentos e perspectivas. Quando disparava a falar, logo alguém já lhe rotulava, interrompia, fazia troça, desconsiderava, algo assim. Quiçá era uma reação? Intolerância recíproca para escolhas diferentes. Isso acontece! Ou: refluxo da ladainha constante. Impossível resolver quando se adquiriu por hábito a menos nítida resolução.

Aprendeu que não podia confiar em qualquer que fosse, o que levou a sério por toda a vida. Até que, numa tarde qualquer, desconfiou que também podia mentir. Mentir a si mesma. Traço de pânico ou paranoia. Tentou se curar de feridas antigas, provocadas por mecanismos internos. Porém, não deixou de carregar consigo a desconfiança, essa antiga companheira, para momentos alarmantes ou relaxantes - tanto fazia.

Entendia pouco como as certezas dos outros eram tão sólidas, tão fixas. Quando é que não se questionaram? Ou seria ela quem não aceitava as próprias definições? Tinha dúvidas constantes quanto à relatividade dos parâmetros impostos. Alimentava suspeitas infinitas com relação ao que já parecia certeiro.

A coerência era uma meta, lá de longe, uma utopia. Seu comportamento a traia, quase sempre, porque buscava retidão onde só enxergava curvas. Tinha como política nunca escolher, deixar correr, considerando, justamente, essas curvas. Mas, sua reação beirava a autodestruição. E, assim, obviamente, esse era mais um motivo de culpa: o não fazer, não agir, não escolher, não apelar, não comunicar.

Se sentia ingrata e injusta para com o mundo. Notava, em contrapartida, como era alta sua dose de autopiedade. Fazia parte de seu jogo. E descartava, mais uma vez, o movimento entre a dúvida e a responsabilidade. Os caminhos pareciam cada vez mais contínuos e a estreiteza das respostas lhe fazia, cotidianamente, fugir.

Sempre que encontrava um interlocutor, abria-se, em busca de conselhos. Mas esquecia-se que os ombros e os ouvidos alheios também não eram assim tão seguros com as angústias. Aliás, essas pessoas também deviam ter suas angústias, irreparáveis, inomináveis. Também não sabiam como lidar com as adversidades. De modo que nunca teriam respostas para o que ela sentia; pois o sentimento não é um só. No máximo, no máximo, um julgamento poderia surgir, como sempre, a partir do seu próprio.

Não era fácil tanta guerra. Então, ela dormia. E, ao sonhar, caminhava.