sábado, 5 de setembro de 2009

cadência


Vai e vem. Vem e vai. Movimento onírico das moléculas irrequietas. Onda singela, portadora de sons e imagens. Ora sons, ora imagens. Magnetismo natural. Energias incandescentes. Modulação mediana. Sentido em relevo. Revoar de quadris. Suspirar de ares. Sensações mergulhadas. O envolver do mar. Vai e vem. Vem e vai.

ímpeto

Mexia os dedos rapidamente, tentava estalar as juntas, parava. Mordia os lábios até arrancar uma fina pele na boca sangrenta. Parava. Respirava fundo, tomava água, mexia os dedos dos pés freneticamente. Parava. Enrolava os cabelos, piscava, espirrava. Na sua cabeça uma sequência de imagens fazia o efeito contrário ao da meditação, tantas vezes indicado para casos como aquele. O desespero passava pelos olhos, pela mente, pelas lembranças. Enquanto isso, seu corpo se manifestava inquieto e absorto em uma energia vil.

Foi quando decidiu. E partiu fumegante três andares de escada. Atravessou a rua fora da faixa de pedestres, com o sinal verde, os carros passando, as pessoas resmungando, sem sequer notar. Passou pela banca de frutas, roubou uma goiaba e mastigou-a num ímpeto, enquanto alcançava a próxima quadra.

Olhou para o relógio, não via que horas marcava. Revirou a bolsa, não encontrou o bilhete. Desesperou-se ainda mais. Meticulosa, não acreditava que resolveu seguir. Havia pensado muito, mas parecia-lhe mais um daqueles impulsos que tanto acusava-se de dar, que tanto evitava e tanto perdia tempo racionalizando sobre "tê-lo ou não".

Sem fôlego, parou sob a mangueira, enquanto o próximo semáforo indicava a cor amarela. Estalou novamente os dedos. Pensou em voltar. Comprou água mineral do ambulante que percorria as pessoas e os carros. Continuou, a passadas cada vez mais largas.

Atravessou a praça. Outra faixa de pedestres. Outro quarteirão. Outro bairro, numa caminhada sem fim.

As cores em sua vista eram cada vez mais turvas e os sons percorriam seu cérebro com a mesma velocidade de seu sangue. Buzinas, conversas, sons mecânicos, construção, motores, fuligem, pastilhas, grafite, fossa, cheiros fortes, comidas e transeuntes compunham seu delírio bastante concreto para aquela tarde nublada e úmida de segunda-feira.

Enfim chegou ao seu destino: uma floricultura de esquina. Um sobrado rococó, com porta de madeira e tinta seca em tom pastel descascada no muro. Pediu melissas e flores do campo envolvidas em fita branca. Espirrou. Espirrou. Com as narinas irritadas, desmaiou.

domingo, 30 de agosto de 2009

vale para todos os tempos

"Não confio em reformulação democrática se pequenos gestos como o de permitir o encontro de presos com seus familiares e amigos não sejam lealmente observados. Antes de anistia, que a consciência e a conveniência política estão pedindo, é preciso restabelecer o direito ao abraço, ao beijo e à conversa afetuosa dos que estão cá fora com os que estão lá dentro".

Carlos Drummond de Andrade em A cor diferente do sábado, crônica publicada no Jornal do Brasil de 22 de março de 1979.