terça-feira, 21 de junho de 2011

registro de caminhada

Repórter é etnógrafo sem método (estou com mania de dizer), e, por isso, pseudo-etnógrafo. Não tem cuidado com as anotações, não dá ordens ao seu pensamento, não realiza levantamento bibliográfico antes de ir a campo e sequer repete as mesmas etapas de “investigação” quando se envolve em/com um tema. Por tudo isso, quando um jornalista adentra o universo científico, sente-se vulnerável. Aquela segurança do texto pré-formatado e dos acontecimentos rotineiros dá lugar aos questionamentos feitos por outrem, bem como dos conceitos cuidadosamente desenvolvidos mediante muita leitura e observação. Como tratar de especificidades estudadas ao longo de uma vida em poucos meses? Repórter, então, tem de ir buscando seus métodos, ainda que lhe custe sua cara espontaneidade dialógica, ainda que não saiba por onde começar.

Para realizar excursão – incursão – imersão ao mundo rural, recebi a ajuda organizada do professor Gabriel, que enviou-me textos e fez um “panorama” do que eu poderia encontrar nos locais por onde passaríamos Carlos, o fotógrafo, e eu. Recebi indicações prévias sobre o contexto de Itapuranga e Varjão, sobre as pessoas que me acompanhariam e seus contatos. Assumi a tarefa inicial de familiarizar-me ao trabalho e às pessoas nele envolvidas – e não foram poucas.

Tive dúvidas sobre a ordem das leituras. Para a ciência, o “levantamento bibliográfico” é costumeiramente o primeiro passo, embora a Antropologia discuta esta ordem. Resolvi seguir Cremilda Medina, uma professora que me acompanhou durante muito tempo nas aulas de técnica de reportagem. Assim, li nada antes. Foi pior para Ricardo, Marco, Juliana e Shara, meus interlocutores diretos, que tiveram de me explicar minuciosamente cada um dos termos que usavam. No entanto, melhor para meu espírito aventureiro, que se encantou com as conversas travadas e as palavras pronunciadas pelas pessoas que conheci da forma como se apresentavam, à primeira vista, sem muito crivo ou olhar crítico. Não cheguei a esvaziar-me, pois isto é impossível para todo ser humano, porém, me abri para receber o mundo novo. E o recebi com o prazer do requeijão com doce de limão e da salada de frutas frescas retiradas do pé.

Usei três meios físicos de anotação diferentes. Um para as indicações iniciais do professor Gabriel e também para as discussões do seminário sobre “o mundo da agricultura familiar em Goiás”; outro para as viagens e as conversas em campo; mais um terceiro para as ideias esparsas que poderiam surgir na mente. Isso não foi intencional. Quando vi, já tinha estabelecido essa ordem. Aconteceu, contudo, que o primeiro e o terceiro, algumas vezes, foram trocados. O que me deu certo trabalho na hora de transcrevê-los (e compreender o que estava escrito).

Em alguns momentos vi nexos entre este trabalho e outro que eu estava fazendo com a professora Maria Clorinda, da Escola de Veterinária, coordenadora do projeto de implantação e manutenção do gado curraleiro junto ao povo Calunga. Isso foi trabalhoso de desvincular. Tudo era campo, tudo era forma de sobreviver, tudo era busca por autonomia na produção. E agora? Para completar, anotei tudo nos mesmos cadernos. Outra dificuldade.

Depois das viagens, passei a ler os textos e a maturá-los. Além dos recomendados pelo professor Gabriel, busquei ler também o que havia narrado o primeiro integrante do projeto de Itapuranga: professor Joel. Encontrei duas produções dele nos arquivos da própria UFG. Um que explicava sobre a Agroecologia, este campo multidisciplinar, e outro que tratava da fruticultura em Itapuranga.

No meio do caminho, encontrei Marcelo Mendonça, professor do curso de Geografia do campus de Catalão, com seu conceito de “povo cerradeiro” e seu relato de experiência também com a Agroecologia e com a troca de sementes crioulas. Em linhas muito gerais, vi o “povo cerradeiro”, esse grupo de pessoas que resiste à própria expropriação e “re-existe” no mundo rural (por meio da associação em movimentos), tanto nas pequenas propriedades de Itapuranga como no assentamento Palmares, em Varjão. Mais uma vez, temi misturar os assuntos. Até que um dia entrevistei Marcelo, na Escola de Agronomia. Um alívio foi quando ele próprio autorizou-me a fazer articulação entre os estudos e os projetos. Notei, aliás, que ele talvez não quisesse ser mencionado pela seção “cultura”, sim pela seção “produção”.

Até o dia do seminário sobre “o mundo da agricultura familiar em Goiás”, rascunhei textos, mas não os encaminhei para a revisão – como havia prometido para tanta gente, inclusive a própria revisora. Depois de assistir a um dia de debates na EA e gravar quase todas as falas, voltei para casa, cansada, cheia de dúvidas.

Como resumir? – essa era a dúvida principal.

A essa altura, já estava encurralada pela editora da Revista UFG Afirmativa, que previa pouco mais de 20 dias para o fechamento do material e conhece bem o meu tempo demorado de produção e maturação dos textos. Fiz, então, um resumo de todas as reportagens que estava fazendo ao mesmo tempo. Era uma forma de dizer como eu estava produzindo. Fiquei um pouco preocupada, pois minhas andanças pela UFG, em um mês, me renderam sete abordagens diferentes para o grande e generalista assunto do Cerrado. Além da produção de alimentos, ainda havia de me preocupar com as festas populares, as identidades do povo goiano, os calunga, os avá-canoeiro, a congada, as descrições da literatura local, o sudoeste goiano etc.

Transcrevi fitas, reli textos de Gabriel, Marcelo, respectivos orientandos, e de Joel. Li outros novos, como de Paulo Freire (este antigo companheiro de dissertação), Jacques Chonchol (apresentado por Paulo Freire), Zander Navarro (encontrei no Scielo), José de Souza Martins (um senhor que me desperta muita admiração e que tive a honra de entrevistar em 2010), Antônio Teixeira Neto (localizado no Observatório Geográfico de Goiás), Eguimar Felício etc. Também, acessei o site do Movimento Camponês Popular (MCP), indicação de um dos entrevistados, e tive acesso a outros tantos documentos e estatísticas referentes ao agronegócio. Algo assim que, para aproveitar, tive de buscar na própria fonte como o Sindicato das Indústrias de Agrotóxico (Sindag), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Agência Nacional de Saúde (Anvisa). E mais uma vez passei a remoer.

Quando falo remoer, me refiro à ação de, todos os dias, dormir e acordar pensando em determinado tema: Como fazer? O que escrever? Como começar? Como não ser leviana? Como ser o mais fiel possível àquele universo que não é meu? Remoí por mais de 15 dias e ainda estou a fazê-lo, ainda que meu prazo esteja mais do que vencido. Graças à greve da minha categoria ganhei uma prorrogação no tempo. Penso, contudo, que esta não deve tardar.

Foi, então, que comecei a escrever a reportagem de várias formas. Pensei em frases, descrições de ambientes, partes extraídas dos textos, associações de ideias, conceitos, contextos históricos e políticos, até poemas. Encontrei um comentário do professor Joel que passou a ser uma das chaves fundamentais: “As experiências humanas não podem ser desperdiçadas”. Passei a pensar no campo como este lugar do trajeto, do reconhecimento e do recomeço. Eternamente. “Entranhamente”.

Ainda não pude dar fim a esse processo produtivo, muito embora possa sentir que isso está mais perto do que esteve ontem. Ainda não sei onde vou parar, sendo sincera. Mas, queria registrar a forma como venho produzindo, pois tenho descoberto que o caminho, de fato, não é resultado, não é fórmula com lead e sublead pronta na mente, mas sim a marca da própria caminhada. Como diria o poeta, “se faz ao andar”. Mais do que isso, preciso lembrar o meu próprio caminho, para que depois possa sentir os pingos de suor desta labuta-reportagem-ciência que está cada dia mais complexa, pois mais instigante.