Para as meninas de fogo
De repente, preferimos fechar a roda e conversar entre nós. Sobre eles? Não. Sobre nós. Não cogitávamos ali nossas vidas com eles ou por eles. Ignoramos isso. Tínhamos ganas de descortinar nossas curiosidades sobre nós mesmas. E assim fizemos.
Falar sobre nós foi muito além da vida privada ou dos relacionamentos privados - como frequentemente as mulheres costumam dividir suas vidas com as outras: namorados, amigos, filhos, maridos, amantes, netos. Queríamos compartilhar sentimentos, sonhos, livros lidos, cheiros percebidos, experiências adquiridas e, acima de tudo, propostas para nosso futuro.
Vínhamos de um encontro sobre Educação Popular que nos reunia na condição de militantes ainda em iniciação e guardávamos, então, uma ânsia de mudança que deveria começar ali, naquele momento. Encontramos nossa opção: sem separar, segregar ou distanciar, nos fechamos para que nos aproveitássemos melhor. Para que nos descobríssemos outra vez. Para que digeríssemos melhor todo o resto da vida e compreendêssemos nosso papel no mundo, enquanto mulheres, amigas, irmãs, cúmplices, enquanto meninas com um caminho, uma rota, um mapa e muitas ideias em comum.
Foi aí que eles ficaram mudos, perdidos, com a atenção desatenta em frente à TV, como quem quer ouvir, procurando nossas broncas e nossos sorrisos. Éramos uma turma grande, mas, quando resolvemos conversar só entre nós mesmas, calamos os homens. Sim, eles precisavam de nós. E quem disse que não precisam? Mas havia um encantamento muito maior entre nós do que entre eles. Estávamos competindo? Não, eles são ótimos: doces, inteligentes e sedutores, cada um ao seu modo. Ótimas companhias. Mas, estávamos muito mais preocupadas com os nossos próprios encantos, nossos ascendentes, olhares e hormônios. Sempre que tentávamos incluí-los em qualquer assunto, o ato de retomar as falas anteriores era tão cansativo que - pronto! - sem notar estávamos as cinco fechadas em nossos discursos. Adiantava? Não. Era um ato de sobrevivência aproveitar a nós mesmas com a maior intensidade possível.
Nos apaixonamos umas pelas outras? Claro que sim. Estávamos levando o feminismo ao pé da letra? Talvez, para experimentar. Ultrapassamos a conta com a militância, a ponto de levá-la para a mesa do bar? Quem nos dera! As hipóteses são muitas. Inegável foi nosso prazer, nossa contemplação e a nutrição de nossas almas ao ouvir uma e outra companheira pronunciar os mais variados temas.
Daí à reflexão daquele ato, uma consequência. Enquanto uma das cinco meninas discursava (ou "palestrava", como brincamos) sobre o "masculino" e o "feminino" no mundo, sobre mitos, fábulas e falsas mortes do simbólico, lembrei da Simone de Beauvoir. Foi como reler O Segundo Sexo e compreender o que li há cerca de um ano pela fala de outra mulher - melhor ainda: uma amiga me ajudava a reinterpretar Simone! Toda e qualquer tentativa que temos de nos enxergar enquanto seres independentes, que não são a costela dos homens ou que não são a outra metade dos homens, nos é roubada todos os dias. Nos é roubada quando nos exigimos os dois quilos a menos, pintamos as unhas, deixamos de nos encontrar, desistimos da política, quando não sabemos trocar o pneu de um carro, quando disputamos entre nós mesmas a atenção sexualizada deles, quando não nos consideramos seguras para voltar para casa sozinhas no meio da madrugada, quando encampamos o pensamento hegemônico do desamor.
Uma mulher branca e burguesa prefere ficar ao lado de um homem branco e burguês do que de uma mulher negra e proletária - escreveu Simone. Nossa independência do olhar do outro, que nos domina, é perdida cada vez que assim escolhemos estar ao lado de um homem que consideramos ser mais iguais a nós do que as próprias mulheres - comentou, ao seu modo, a amiga que tomou a palavra. E quantas vezes não fazemos isso? - pensamos. Deste modo, chegamos ao acordo de que o que nos restava para aquele momento (e para tantos outros) era a tentativa de nos recuperarmos.
A essa altura do diálogo e da troca, eis que caímos em leve besteira de definir um isso ou aquilo para nós e para eles. Até perceber que, mais uma vez, poderíamos incorrer no erro da comparação complementar.
...
Chega! Vamos conversar com eles novamente?
Nos (re) misturamos. Contudo, sem sentir que fomos vencidas e sem querer vencê-los. Aliás, continuamos a amá-los. Porém, com a certeza de que é de nós mesmas que precisamos nos momentos inspirados, dificultosos ou de renovação. Como ontem.
Para resistir, transformar e evoluir, nada melhor do que as situações mais corriqueiras da vida, entre mulheres. Sem competição, mas com a clareza de que as diferenças não devem ser esquecidas.