sábado, 14 de novembro de 2009

resistir - ou o feminismo de todos os dias


Para as meninas de fogo


De repente, preferimos fechar a roda e conversar entre nós. Sobre eles? Não. Sobre nós. Não cogitávamos ali nossas vidas com eles ou por eles. Ignoramos isso. Tínhamos ganas de descortinar nossas curiosidades sobre nós mesmas. E assim fizemos.

Falar sobre nós foi muito além da vida privada ou dos relacionamentos privados - como frequentemente as mulheres costumam dividir suas vidas com as outras: namorados, amigos, filhos, maridos, amantes, netos. Queríamos compartilhar sentimentos, sonhos, livros lidos, cheiros percebidos, experiências adquiridas e, acima de tudo, propostas para nosso futuro.

Vínhamos de um encontro sobre Educação Popular que nos reunia na condição de militantes ainda em iniciação e guardávamos, então, uma ânsia de mudança que deveria começar ali, naquele momento. Encontramos nossa opção: sem separar, segregar ou distanciar, nos fechamos para que nos aproveitássemos melhor. Para que nos descobríssemos outra vez. Para que digeríssemos melhor todo o resto da vida e compreendêssemos nosso papel no mundo, enquanto mulheres, amigas, irmãs, cúmplices, enquanto meninas com um caminho, uma rota, um mapa e muitas ideias em comum.

Foi aí que eles ficaram mudos, perdidos, com a atenção desatenta em frente à TV, como quem quer ouvir, procurando nossas broncas e nossos sorrisos. Éramos uma turma grande, mas, quando resolvemos conversar só entre nós mesmas, calamos os homens. Sim, eles precisavam de nós. E quem disse que não precisam? Mas havia um encantamento muito maior entre nós do que entre eles. Estávamos competindo? Não, eles são ótimos: doces, inteligentes e sedutores, cada um ao seu modo. Ótimas companhias. Mas, estávamos muito mais preocupadas com os nossos próprios encantos, nossos ascendentes, olhares e hormônios. Sempre que tentávamos incluí-los em qualquer assunto, o ato de retomar as falas anteriores era tão cansativo que - pronto! - sem notar estávamos as cinco fechadas em nossos discursos. Adiantava? Não. Era um ato de sobrevivência aproveitar a nós mesmas com a maior intensidade possível.

Nos apaixonamos umas pelas outras? Claro que sim. Estávamos levando o feminismo ao pé da letra? Talvez, para experimentar. Ultrapassamos a conta com a militância, a ponto de levá-la para a mesa do bar? Quem nos dera! As hipóteses são muitas. Inegável foi nosso prazer, nossa contemplação e a nutrição de nossas almas ao ouvir uma e outra companheira pronunciar os mais variados temas.

Daí à reflexão daquele ato, uma consequência. Enquanto uma das cinco meninas discursava (ou "palestrava", como brincamos) sobre o "masculino" e o "feminino" no mundo, sobre mitos, fábulas e falsas mortes do simbólico, lembrei da Simone de Beauvoir. Foi como reler O Segundo Sexo e compreender o que li há cerca de um ano pela fala de outra mulher - melhor ainda: uma amiga me ajudava a reinterpretar Simone! Toda e qualquer tentativa que temos de nos enxergar enquanto seres independentes, que não são a costela dos homens ou que não são a outra metade dos homens, nos é roubada todos os dias. Nos é roubada quando nos exigimos os dois quilos a menos, pintamos as unhas, deixamos de nos encontrar, desistimos da política, quando não sabemos trocar o pneu de um carro, quando disputamos entre nós mesmas a atenção sexualizada deles, quando não nos consideramos seguras para voltar para casa sozinhas no meio da madrugada, quando encampamos o pensamento hegemônico do desamor.

Uma mulher branca e burguesa prefere ficar ao lado de um homem branco e burguês do que de uma mulher negra e proletária - escreveu Simone. Nossa independência do olhar do outro, que nos domina, é perdida cada vez que assim escolhemos estar ao lado de um homem que consideramos ser mais iguais a nós do que as próprias mulheres - comentou, ao seu modo, a amiga que tomou a palavra. E quantas vezes não fazemos isso? - pensamos. Deste modo, chegamos ao acordo de que o que nos restava para aquele momento (e para tantos outros) era a tentativa de nos recuperarmos.

A essa altura do diálogo e da troca, eis que caímos em leve besteira de definir um isso ou aquilo para nós e para eles. Até perceber que, mais uma vez, poderíamos incorrer no erro da comparação complementar.

...

Chega! Vamos conversar com eles novamente?

Nos (re) misturamos. Contudo, sem sentir que fomos vencidas e sem querer vencê-los. Aliás, continuamos a amá-los. Porém, com a certeza de que é de nós mesmas que precisamos nos momentos inspirados, dificultosos ou de renovação. Como ontem.

Para resistir, transformar e evoluir, nada melhor do que as situações mais corriqueiras da vida, entre mulheres. Sem competição, mas com a clareza de que as diferenças não devem ser esquecidas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

imbricações

E, de repente, tudo começa a fazer sentido. Os fragmentos de realidade e de virtualidade se resumem a uma só vontade do ser humano: conspirar, estar junto, respirar conjuntamente. É o velho desejo da mordida na maçã.

Hoje, ao fim da tarde, a Agnes me mostrou como funciona o Google Wave, mais um aparato para que as pessoas troquem linguagem, valores, informações e símbolos na rede. Entendi quase nada, mas mesmo assim pedi que me mandasse um convite de criação da minha conta. Logo em seguida, pensei: por que quero entrar para mais uma rede? E me veio uma preguiça leve, daquelas que vai crescendo conforme a gente se afasta do "novo".

Pelo que vi, as conversas entre as pessoas no Google Wave são mais dinâmicas do que no Orkut ou no Twitter e mais rápidas que o bate-papo em salas coletivas ou nas janelinhas do Messenger. Além disso, você ainda pode mandar e-mail em forma de vídeo, áudio, texto e o que mais considerar conveniente. Pode trocar canais de interação sem precisar abrir e fechar outras janelas e acompanha todas as conversas de e com seus amigos desde o início, para que a tão sonhada "interatividade" de Bertolt Brecht seja garantida. Aliás, me parece que o "wave" da onda é justamente pela facilidade de fluir no espaço imaterial das informações.

Aí foi que apareceram umas tantas dúvidas: Será que é mais um software nas nossas vidas? Mais uma rede social? Mais uma possibilidade de interação? Por que pedi um convite para entrar no Google Wave, se tanta gente me convida para o Facebook e eu não vou?

Cheguei em casa e fui bater papo com o Leo, pelo Messenger. Coisa rara, já que há muito todos nós (não só eu, não só ele, você também) perdemos a paciência com o barulhinho "tu-ru-rum" daquela janela piscante. Houve uma grande dificuldade de travar um diálogo inteiro que fosse, um raciocínio claro entre o que líamos e escrevíamos. Foi então que percebi que a chance de eu me irritar era muito maior com a tecnologia do que sem ela. Se pessoalmente a conversa flui claramente, mesmo que tenhamos sempre a consciência como filtro de nossos pensamentos, e quase nunca me indisponho, à distância uma parafernalha técnica impede a concentração, a atenção, o carinho e a dedicação. Antes de tudo isso: impede a compreensão. Aí os filtros são outros, muito maiores, porque são físicos. Uma relação que em outras situações seria dialógica, ali (e o problema não era a pessoa, estou segura disso) não passava de uma sucessão de monólogos desconexos.

Foi então que, automaticamente, lembrei-me da ideia trocada com a Agnes no final da tarde. E veio um estalo! Radicalidade de desdém à parte, não é por perder a paciência no Messenger que o ser humano vai desistir de desafiar a técnica. Eu também não a descarto. O que pode acontecer é a busca por um software que reproduza melhor nossa interação face-a-face.

Era o que nos questionávamos Agnes e eu na conversa anterior: por que temos tantos programas, tantas relações virtuais e tantas redes, se há uma vida imensa lá fora? E por que temos sempre a necessidade de trocar informações em vários softwares diferentes?

Sem querer responder, cogitamos o que horas depois fez todo o sentido: mesmo com preguiça de aprender, queria usar o Google Wave com a esperança de que essa tecnologia, essa intervenção humana sobre o ambiente, me aproximasse mais das pessoas. É uma espécie de reinvenção das relações, para que retornemos a elas.

Mundo de ficção científica? Sim, "as transformações estão passando na nossa frente", disse minha sábia colega de trabalho. Stanley Kubrick - inspirado em outras referências, claro - foi muito feliz ao relacionar o fogo com a nave espacial em 2001: uma odisseia no espaço. Pois desde o manuseio das primeiras pedras estamos criando e recriando condições de intervir no mundo para aproveitar esse mundo.

Ainda que muitas das relações humanas sejam modificadas e até possibilitadas pelas tecnologias (das impactantes às particulares), o que buscamos sempre é a proximidade com o outro. É viver entre a intensidade e o distanciamento. Entre pensar no que falar e falar sem pensar. Entre agir sem previsão e calcular qualquer impulso. Um esforço cíclico e contraditório de dominação das próprias condições temporais.

É assim que Mario Benedetti, em Mass Media, torna-se apropriado:



De los medios de comunicación
en este mundo tan codificado
con internet y otras navegaciones
yo sigo prefiriendo
el viejo beso artesanal
que desde siempre comunica tanto



Não que tenha decidido não aprender a lidar com o Google Wave. Longe disso. Mas, devo reconhecer que nossa intenção maior enquanto gente que se comunica, independente do software, é não perder uma piscadela da fotografia que brilha na tela. Ou seja, não perder um momento sequer do outro.

Que bom que existem os abraços!

terça-feira, 10 de novembro de 2009

sem paciência

A "paciência é a ciência da paz", disse o mestre de cerimônias. "Pois é..." - pensei, cética - "...e lá paz tem ciência?". Deixei passar, preferi enxergar as veias dilatadas e as gotas de sangue circulares. Preferi enxergar distorcido, como aqui dentro, do que me preocupar com o verbo que vinha de fora.

E hoje fico aqui pensando, de que vale tanta denominação. O que quer dizer a ciência da paz? Um método, uma teoria, um fundamento? Ou uma racionalidade discursiva? Tem que explicar? Se tiver, não quero. Não é essa paz que eu quero.

Portanto, quanto mais você se explica, se explica por pouco, se explica por muito, quanto mais desculpas tem que dar, quanto mais conversas semear, mais sua racionalidade vira retórica e, portanto, menos eu vou acreditar.

Perde o contato com o imediato, perde energia, perde força, perde segredo. A paz da paciência é "corazonal", diria Restrepo, e não científica.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

de novo e sempre

Poesia, de novo?

De novo e sempre. Há muito o que escrever em prosa, quando se vive em prosa. Há sensações, descobertas e suspeitas. Há vida em narrativa. Vida que já é narrada todos os dias, que está na feira, na rua, no ônibus e na galáxia inteira. Há experiências, lacunas, percepções e outras novas constatações. Vida que passa por terras de minério, terras de ferro e de sol. Há pessoas, animais, coisas, sinais, vento, água e sal. Há esperança e desencontros. Tempo e espaço.

Na prosa há tudo isso. Daí a necessidade de contar. Na poesia, porém, a vida ultrapassa a narrativa e vira sentimento seguro que não sabemos de onde vem. Pieguice desmedida? De novo e sempre.

Enquanto a vontade de narrar não vem, as semanas vão começando assim, com poesia dos outros.

Por Abel Silva, mais uma vez:


O amor é outra liberdade
Não é o susto da paixão
Não é um raio
É um espelho
Não é o medo da solidão

Uma paixão naquela esquina
Guarda um punhal em sua mão
O amor semeia, colhe, espalha
O amor divide sua ração

Uma paixão quando envelhece
Senta no cais com os olhos fundos
Quer viajar por outros mundos
Quer ver mais perto
Romper abrigos
Redescobrir perfil incerto
Surpreender velhos abrigos
E no terror da liberdade cuspir o anzol
O amor é outra liberdade