quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

cidadania 2


cidadania...

... é conceito.

E, sendo conceito, é conceito formulado. Que pode ser grego ou romano; inglês ou francês. Pode contemplar um recorte de olhar ou a visão do todo, indo da "estrutura" à "superestrutura"; do tijolo ao cimento; do "sistema" ao "mudo da vida".

E por entre um emaranhado de palavras, cidadania vira conceito que se enquadra: num dicionário de sociologia, por exemplo. Envolve a norma, o território, a pertença, a identidade, a nação e a cultura. Brota de outros conceitos. Faz outra série de conceitos. Prévios. Formulados com cautela por denominações demarcadas e levemente fugazes, sem verdades absolutas, irresponsáveis na justa medida: a ciência e a ideologia.

Cidadania é palavra bonita para os discursos mais apropriados. É desfecho para preocupações corriqueiras. É um esquadro da colonização, da dor e do que aceitamos todos os dias. Cidadania é privilégio de quem sabe conceituar, necessidade de quem quer viver junto, obrigação de quem pode escolher.

Eduardo Galeano, em O Livro dos Abraços, me ajuda a definir melhor, bem melhor, o que realmente é cidadania.


Os ninguéns


As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.


Os numerinhos e as pessoas

Onde se recebe a Renda per Capita? Tem muito morto de fome querendo saber. Em nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento?
Em Cuba, a Revolução triunfou no ano mais próspero de toda a história econômica da ilha.
Na América Central, as estatísticas sorriam e riam quanto mais fodidas e desesperadas estavam as pessoas. Nas décadas de 50, de 60, de 70, anos atormentados, tempos turbulentos, a América Central exibia os índices de crescimento econômico mais altos do mundo e o maior desenvolvimento regional da história humana.
Na Colômbia, os rios de sangue cruzam os rios de ouro. Esplendores da economia, anos de dinheiro fácil: em plena euforia, o país produz cocaína, café e crimes em quantidades enlouquecidas.


A fome/2

Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.



Nota: O Livro dos Abraços é de 1989 e foi impresso no Brasil em 2002. Os textos compilados e aqui postados estão entre as páginas 42 e 47.