sábado, 26 de setembro de 2009

aquele velho esquecido

Para o corpo de Berenice
Ou o coração de Wall Street
Para o último tempo
Ou a primeira dose de tóxico
Para dentro de si
Ou para todos
Pra sempre todos emigram*

*Canto dos Emigrantes
poema de Alberto de Cunha Melo


Fecha os olhos, respira fundo, tapa os ouvidos! Viaja! Viaja em um mergulho interior, rumo ao desconhecido mais abundante: dentro de si.

Lugar quente, úmido, palpitante e sanguíneo é seu interior, aquele velho esquecido. Aquele espaço onde não há trégua e nem espelhos, palco ou caixas velhas, representações ou nomeações. Há, sim, emaranhados de nós, que atam e desatam conforme o tempo, o vento, a cor e a dor. Nesse ambiente fluído e espaçoso, fica tudo bem guardado, mas nada é escondido.

Viaja e saberá: que a aventura mais importante da vida é uma imersão. Não são estradas ou ares que nos seduzem, são os mergulhos para o núcleo da alma.

Viaja e garantirá que não há companheiro mais fiel que seu próprio desejo. E que identificá-lo perante a multidão não é tarefa pra um papinho na esquina ou pra um beijo roubado. É trabalho árduo de negociação com a rotina, com a auto-imagem e com as reflexões negadas.

A beleza, a sagacidade, a intriga e as rebeldias estão todas por dentro. Não há tumulto ou calmaria maior nos além-mares. Tantos casos são sempre mais delirantes quando se fecha os olhos. Quando se nota o que não foi desvendado, nada mais lá fora tem graça. As pessoas e suas explicações ficam pouco interessantes.

Viaja e enxerga mais que o horizonte! Nota a si mesmo e terá em mãos respostas breves, segurança mútua e calor natural. Para seguir com a vida exterior, saboreia primeiro sua força interior.

domingo, 20 de setembro de 2009

nada mais é como antigamente

Nem o tomate é o mesmo, está cheio de agrotóxicos. Nem o chocolate garoto, a fanta uva e o jeans surrado têm mais aquele gosto oitentista da infância. Não se fazem mais pães de queijo, empada e pamonha com aquele tantão de queijo dentro. E nem o café ralo e doce a vovó faz mais.

Não se fazem mais como antigamente: crianças, brincadeira de criança, brigas de criança. Hoje elas perguntam qual a profissão do pai do amigo e preferem as transações do banco imobiliário virtual.

Não se fazem mais os mesmos cavalheiros, os mesmos cavaleiros, os mesmos garçons e o mesmo "lord" inglês. Hoje parece que há uma preocupação maior em ser ético, quando na verdade não há ali um pingo de autenticidade. Não é como antes sequer a mesma malandragem, que jogava seu chapéu para o vento, em um clima romântico de sedução e boemia. Hoje os malandros, com suas camisetas Lacoste, usam água de cheiro industrializada e tentam parecer doces rapazes.

Não se fazem mais os mesmos causos, as mesmas prosas e o mesmo balanço. As conversas são cheias de informação, mas sempre regadas por visões superficiais sobre qualquer ato ou fato. As experiências foram sequestradas e "dessequestradas", mas não são as mesmas do mundo que se permitia ser visto muito mais com os olhos e com o coração do que com as lentes da técnica.

Não se faz mais a transcendência como antigamente, porque ninguém está disposto a confiar no que não conhece. Nem eu e nem você somos os mesmos, porque buscando ser sempre melhor, podemos reduzir essa esperança seguindo sempre o pior.

Não se faz mais qualquer coisa de antes. Porque o antes já passou e, uma vez que passou, não traz mais surpresa alguma. É verdade que nada será como antes porque esse antes está na memória, foi apropriado pelas lembranças e tem o gosto que queremos dar, da forma como idealizamos o mundo. E o mundo de hoje é real. E de tão real que é, fica sem graça.

tarde com Vinícius

Aquilo que não se diz, que se esconde de si, que não é bom lembrar sequer nos momentos mais solitários, Vinícius de Moraes fala nesses dois poemas aqui relacionados. Um de muita decepção, outro de muito sonho. Um de plena realidade, outro de puro idealismo. Os dois lados de todos nós. E tudo pode valer nessa carta. E tudo pode estar nesse suspiro. Inspiremo-nos!


A carta que não foi mandada

Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor

Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais
É, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei, nem lembro mais


Ai, quem me dera

Ai, quem me dera terminasse a espera
Retornasse o canto simples e sem fim
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim

Ai, quem me dera ver morrrer a fera
Ver nascer o anjo, ver brotar a flor
Ai, quem me dera uma manhã feliz
Ai, quem me dera uma estação de amor

Ah, se as pessoas se tornassem boas
E cantassem loas e tivessem paz
E pelas ruas se abraçassem nuas
E duas a duas fossem casais

Ai, quem me dera ao som de madrigais
Ver todo mundo para sempre afim
E a liberdade nunca ser demais
E não haver mais solidão ruim

Ai, quem me dera ouvir o nunca-mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E, finda a espera, ouvir na primavera
Alguém chamar por mim