terça-feira, 8 de março de 2011

superficialidade transbordante

Superficialidade transbordante é aquela postura bruta e fria dos bem-resolvidos e intolerantes. Algo que, assim como a mitomania, tem me encabulado bastante. Passo horas pensando sobre isso. Que medo!

Superficialidade transbordante, na minha visão, é similar àquela certeza de que tudo está ao nosso alcance. É comportamento dos inteligentes, dos legais, do grupo certo, da visão de mundo que se diz mais transgressora (e na verdade corre o risco de ser pura regressão). É o problema da mira exata: quem é que se beneficia? Quem é que se contraria? Pensa-se no outro?

“La garantia soy yo” é frase de propaganda. E a propaganda, já dizia aquele senhor cuja teoria eu fetichizei, é apenas um modo de dizer, uma inversão da verdade com conteúdo de verdade. Melhor dizendo, a transformação da verdade em um meio de uso para que se alcance a garantia. E o problema da superficialidade transbordante é justamente parecido aos objetivos da propaganda: está o tempo todo em busca das frases mais adequadas. Essas é que compõem seu vocabulário e também seu manual de comportamento.

O que está na superfície transborda em contrário, vive na beira, não chega a se afundar, não permite, não toma rumo adiante. Apenas aparece e forja. Preocupa-se demasiadamente com o reflexo dos pingos d’água no grande fosso que se formou o avesso.

Ainda que eu lute contra o julgamento travestido de análise, ainda que tente ser menos leitora de entrelinhas (ou ainda que eu venha a duvidar que essas entrelinhas de fato existam), não consigo conviver em um mundo cuja predominância das ações está na superficialidade transbordante. É apenas um desabafo.

domingo, 6 de março de 2011

(des)guarda

Uma estante empoeirada empilhava toda natureza de livros, manuscritos, fotografias, notas e diários. Todo o imaginado, respirado, trocado, violentado e expurgado de um mundo estava ali, criando crostas duras de ciscos trazidos pelo vento.

Teias finas costuradas por aranhas leves encobriam as memórias, tão fugidias. O tempo levou dias, meses e anos para represar tanta história. Portanto, ninguém ali mexia. Impossível. No máximo, acrescentavam mais rabisco, desenho ou súmula. Um pouquinho mais de poeira, talvez...

Apesar de abarrotada, a estante tinha sempre um aspecto translúcido. Era o ausente da estabilidade. E portas de lei devidamente trancafiadas.

Certa noite, um quase dilúvio. Enxurrada forte escalou muros, inundou vigas, quintal e cômodos. Carregou a imundice. Cadernos foram esfacelados pelas paredes. E a poesia, parnasiana, ganhou um quê de concreta. Veio à tona a vida rascunhada. Alguém leu.