quarta-feira, 29 de julho de 2009

inspirar, transpirar, transparecer

Encasquetei com verbo faz tempo: ação que fica no ar e, às vezes, termina em "er" ou "ir". Ação que pode ser do ontem, do hoje, do amanhã, do nunca, do sonho; concreta e também metafísica.

E no princípio fez-se o verbo, disseram alguns. E o verbo do princípio nasce da respiração, da captação, da inspiração. Surge do movimento de buscar o ar, a luz, o calor, a idéia, a vida, a vitamina, um suplemento qualquer. E depois disso, vale ressaltar, num rompante do agir, que é bom mesmo transpirar, exalar, expulsar.

O que sai? O ar. A vida. O mau da vida. O bom da vida. O que se aproveita. O que se remói. O que trituramos para criar, adaptar, reter ou distribuir. Transpirar é ação do devir. É movimento de entrega. Água, lágrima, suor, excrementos quaisquer: tudo sai com o transpirar. Às vezes até o que não se quer, se transpira e... tsc tsc tsc, deixa, vai, fez está feito!

Mas há algo que fica no ar. Ainda que se capte, se guarde e se exiba. Algo que paira involuntariamente, independentemente. Algo está no agir, mas ultrapassa os limites da consciência e, por isso, nem sempre desperta. Ou melhor, desperta, mas não se aceita; aceita, mas não se reconhece. E isso que fica no ar também é verbo, é impulso, é linguagem e comunicação. É ação de transparecer: tentar esconder, não conseguir. E é nesse momento que a alma aparece, desnuda, envergonhada, com todas as suas sombras.

Transparecer é intermediário. É o que se reduz aos gestos. O que ilude. O que se crê poder esconder. O que, ao mesmo tempo, se escancara. Transparecer é desajeitar, lutar contra, pouco ou nada reconhecer, desorganizar. É o anti-verbo do discurso. É gesto para anti-movimentos. É dizer demais, até pensando que não se diz. E a ação da transparência fecha o ciclo.

E tudo começa de novo, graças à oponências e à complementação: transpirar, transparecer. Movimentos de revelar e esconder que acabam por impulsionar, para fim do papear, o começo dessa ação, o inspirar. Quem inspira está a receber o que é exalado, o recado que se quer, mas também o que é revelado - por trás da cortina e à meia luz - o desejo que se quer, mas não se pode.

É como a síntese, só que ao contrário.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

enquadrados

"Ado-A-Ado
Cada um no seu quadrado"
(autor?)

O mundo é redondo? Não, o mundo é quadrado. Feito de retas, bem retas, tão retas que quem tenta desviar um pouco - criar uma curva, ainda que pequena - é achatado entre as vértices. O mundo não aceita nada que não seja um quadrado. Em quadrados. Enquadrado. O mundo enquadra. Emoldura. Emoldurece. Adoece. O mundo formata e divide a vida "em caixinhas, todas elas quadradinhas". E se sua vida não é essa sequência de ângulos retos, não há sobrevivência que se preze, não há amigos ou inimigos, não há conveniência, não há utilidade.

A Terra se fez quadrada, cheia de regras. Orientações de como seguir. Normas de como obedecer. Imperativos de como mandar. Silêncios de como sobreviver. Atos de como estuprar. Demandas de como fingir. Indicações de como ser correto. Retidões de como sentir, sofrer, viver, sobreviver, trabalhar, criar, comer, correr, responder. A Terra não cai no espaço como uma maçã cai da árvore, puxada pela força gravitacional. A Terra gira quadraticamente, como um dado, sempre de um lado a outro, na sequência exata, num movimento energético medonho, indicando os números de um a seis, fazendo seus jogadores apostarem tudo o que têm num resultado inútil.

O planeta é quadrado como os caretas, como os hipócritas, o PCdoB, o DEM, a TFP, Bush, Fidel, Stalin, JK, Getúlio, UDN, Carlos Lacerda e quem mais fez-se pela força (política, coercitiva ou simbólica). O planeta é quadrado como os legalistas, os moralistas, os que não permitem desordem, os que exigem respeito. O planeta é para os bem... sucedidos... todos quadrados!

Quadrado, como um dado, como a lente dos meus óculos, como uma caixa, um pacote que sai quentinho da fábrica: manufaturado, repetitivo, cansativo, simulado, formatado, irreal. Esse mundo em que vivemos é isso. O resultado do que fazemos todos os dias pelo bem estar social é isso. A soma do que caminhamos e construímos para nossas vidas ressentidas e medíocres é isso: um belo de um quadrado.

Não, Cartola, apesar de triturar nossos sonhos tão mesquinhos, o mundo não é um moinho. O mundo é um quadrado. Ado-a-ado, cada um no seu quadrado. O mundo que não é da vida, mas sim das instituições, é como o refrão do funk pouco melódico: segregante, segregado, individual, cada um com sua vida, com suas retas, com seu ponto de vista, com suas fragilidades e seus poderes. E ai de quem desafia esse mundo. Ai de quem não respeita o pai, o chefe, o pastor ou o professor. Ai de quem se embrenha pelas curvas. Sai da linha. Sai da reta. Sai do enquadramento. Fica fora de foco. Fora de ordem. Fora da lei.

Não se pode sonhar com um mundo redondo (ou hexagonal ou triangular ou seja lá o que for que não tenha retas tão certas!). Se pode esperar, no muito, um planeta retangular e, assim, disfarçado. Bem disfarçado! E apagado, anestesiado, respeitoso, mentiroso, cheio de meio termo, meias palavras, verdades pelas metades, falsidades em linha reta. Tudo muito inconstante, inconsistente e frio, feito cubos de gelo.