quarta-feira, 20 de maio de 2009

aonde anda a onda?


A onda*

a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda

*Manuel Bandeira


A onda agora é pedalar. Na cidade, no campo, em horário comercial, às manhãs de domingo. A onda está sobre duas rodas, mas sem motor. Pedale! Para trabalhar, para malhar, para ter uma bandeira, para sentir-se em dia com as necessidades do planeta. A onda, dizem muitos por aí, já está bastante avançada na Europa. Mais uma onda que importamos. Será?

Confesso que já aderi a essa onda. E penso às vezes que, no fim das contas, essa onda é mais privativa que coletiva: é você e sua "bike", só você e sua "bike", circulando, por aí. E que mal há nisso? Mal não há. Trabalho, sim. Meu quadro está maior que o permitido para a minha altura, por exemplo. Perdi meu cantil em pouco tempo de uso. Meu capacete não foi testado pelo In Metro. Não há estacionamento de bicicletas na cidade. Entrei para os grupos de pedal da Internet, mas daí a conhecê-los na vida real, outra onda. Quando insisto, os carros não me vêem e, se vêem, não me respeitam. As pessoas repetem, quando uso a onda para cruzar distâncias: "Você é doida, é perigoso".

A onda, então, é contra-onda. Aonde anda a onda se, ainda, não é uma onda? Ou, se é, é uma onda sem força de onda? A onda ainda está em Berlim ou Paris? A onda tem de ser Bandeira - e brasileira - como Manuel. Tem de ser, então, vulgarizada, assim como foi o carro ou a moto. Vamos reduzir o IPI de nossas mentes! E pedalar juntos! Sim, pedalemos juntos, nós e nossas "bikes"! Para que façamos, de fato, uma onda.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Ilmo. sr. Caco Barcellos

Com um pouco de vergonha me entrego - e me presto - a este papel. É que gostaria de perguntar-lhes (ao sr. e à sua equipe) que tipo de repórter tem se interessado pelo seu programa - por assisti-lo e também por produzi-lo. É uma dúvida há muito alimentada, embora hoje minha curiosidade tenha passado dos limites.

Há muito não parava diante da TV. Que ironia, não? Trabalho numa TV pública que sequer está no ar, mas não consigo acompanhar a programação da Rede Globo, detentora do famoso "padrão de qualidade"!?! Mas é isso mesmo: há muito tempo não via televisão, sequer a Globo. Mas hoje parei pra ver tudo de uma vez. Da novela das sete ao Profissão Repórter. E eis que me deparo com seus profissionais dentro de uma sala de aula. Conseguiram prender minha atenção!

A escola estava em algum bairro da considerada "periferia" de São Paulo. E o tema era a "euforia" dos jovens dessa "perifa". É claro que a palavra euforia não foi dita. Em seu lugar, usaram o tempo inteiro "realidade". E essa realidade era bastante diversa: menina de 15 anos grávida, menino de 14 anos que se mata, menina negra que não presta atenção na aula, menino que supõe que já tenha engravidado outra menina e por aí vai. E teve início meu espanto (nossa, não me canso de assustar com a mesmice, é incrível!). A jovem grávida, apesar de menor de idade, autorizou que a equipe de reportagem gravasse seu parto. O hospital, público e sério, barrou. A repórter fez cara de brava e isso foi ao ar. A repórter parecia considerar uma tremenda falta de respeito (feriram sua liberdade de expressão! Será?) não deixá-la entrar com a câmera ligada na sala de parto. E o médico responsável pela unidade disse a ela, com muita calma, que havia outras formas de narrar aquele fato. Mas, como ela parecia ter perdido a matéria, grilou declaradamente. Ôpa, desculpe o termo, sr. Caco! Ela sentiu muita raiva. Dava pra ver em seus olhos. E a cena final dessa trama foi a adolescente dormindo num maca disposta no corredor. E a repórter arrematando: "A primeira cena de fulana depois do parto é essa... dormindo no corredor do hospital". Me passou idéia de abandono. E talvez tenha sido isso mesmo que os autores da reportagem queriam que eu sentisse.

Outro espanto foi o irmão mais novo do suicida dizer que seu irmão quis morrer porque apanhava muito na escola. Enquanto isso, a mãe da vítima (posso falar vítima? ah, não sei, existe um protocolo no jornalismo que proíbe que se fale em morte provocada por si próprio, então não sei qual o melhor sinônimo para suicida) lia a carta que o garoto deixou, justificando a vontade de deixar de viver. Choro, muito choro. E o começo de toda essa cena foi o seu repórter, sr. Caco, fazendo cara de humilde ao bater na casa dessa família: "Eh.. tudo bom? Eh, que complicado...".

Meu estarrecimento não pára por aí. O sr. também me indignou muito (aliás, muito mais que seus jovens seguidores) ao entrar naquela sala de aula e escolher a aluna mais negra da turma para entrevistar. Para um premiado jornalista que fareja elementos da "realidade", é uma sacada e tanto. Lá no cantinho da parede, uma loira e uma negra conversavam enquanto a professora ensinava... ensinava o que mesmo? Matemática, acho. É, matemática. E vai o sr. pedir licença para perguntar: "Por que você não está prestando atenção na aula?". E a guria: "Ah, porque eu não entendo nada!". E o sr., concluindo, em off: "Os jovens da periferia são, em maioria, desinteressados". Primeiro que a pergunta foi ridícula e invasiva, segundo que a loira não teve a mesma oportunidade de falar, terceiro que há mil motivos para uma pessoa perder a concentração em uma aula expositiva. Quarto, e último, que o resultado daquela investigação foi dado pelo que vocês captaram num momento muito pouco trivial. A presença da TV Globo no momento da aula muda tudo na rotina daquelas pessoas e, certamente, deixa-as ainda mais agitadas.

No cenário da eficiente redação, e amarrando todos esses fragmentos que compuseram seu programa, estavam o sr. e seu pupilo analisando imagens e discutindo sobre como abordar a fonte, como captar as melhores cenas, que dificuldade ou facilidade tiveram para dar continuidade à incursão pela "perifa"; enfim, o sr. aconselhava e o repórter inexperiente chorava suas, por assim dizer, mágoas. Ah, como me lembrei do Altair na 730, do Edson na Universitária e do Bittencourt no O Sucesso! É uma fase boa essa de dividir problemas com o editor. Principalmente quando ele parece ser compreensivo, dedicado e experiente como o sr. Mas, mais uma vez me decepcionei quando notei ambos (o sr. e seu rebento) interpretando a "realidade" revelada nas imagens pelo crivo da burguesia. Sim, eu insisto nessa palavra, burguesia, simplesmente porque não há outra melhor. Brancos, estudados, bonitos, engomadinhos e discutindo sobre a "falta de oportunidade" daqueles jovens que não querem estudar. E analisando tudo por cima, encarnando de fato o papel do jornalista mediador e cartesiano, que não se envolve e que narra oniscientemente o que vê. O que vocês entendem sobre falta de oportunidades?

Ora, o que vocês vêem não é necessariamente o que é de fato. É o que percebem, só isso. E quando optam por revelar que na periferia há angústia, dores, revolta, desatenção e uma série de outros problemas públicos e privados, reforçam uma série de discursos dominantes. Alguns deles, que além de dominantes soam neoliberais, estiveram muito claro em quase todas as passagens do Profissão Repórter: não é preciso escola para pobre; os jovens da periferia são desestruturados; tudo é um caos quando o assunto é formação de jovens da periferia. Me desculpe se estiver enganada, mas quando se opta por deflagrar apenas o caos, é isso o que eu entendo. Por que o governo investe, se as pessoas não se concentram, não estudam e têm uma série de dramas muito maiores? É isso o que está nas entrelinhas do seu discurso, sr. Caco.

E quando a professora assume que "existe um abismo entre o que eu falo e o que os alunos compreendem", mal sabem vocês que há um planejamento do Banco Mundial para a educação brasileira (e para os outros sete países mais populosos do mundo) que prevê, desde a década de 90, entre outras metas, corte de verbas para a capacitação desse professor. Esse sujeito é levado a dominar o conteúdo muito mais do que desenvolver novos métodos pedagógicos, é obrigado a passar mais tempo na escola e a, inclusive, estudar no mesmo ambiente em que executa suas tarefas de todos os dias. Muito age e pouco reflete, cada dia mais. O abismo está entre as políticas públicas e a educação, não entre a professora e o aluno. Mas o sr. e sua equipe parecem não se importar com isso. Tanto, que frisam, ainda que indiretamente, que o problema é daquela comunidade. Pode ler sobre formação continuada e gestão escolar pra ver como está tudo lá: desde o Collor a educação tem sido reformada para um modelo reducionista. E quem sofre isso certamente não são os repórteres de seu programa, nem o sr., mas sim aqueles jovens que, além de tudo, são classificados como problemáticos.

Por isso, Ilmo. sr. Caco Barcellos, gostaria muito de saber que tipo de estudante ou profissional procura seu programa. Os arrogantes? Os brancos? Os burgueses? Os iludidos? Que tipo de jornalista acredita que vai cumprir seu papel social seguindo esse comportamento - tão habitual entre nossos colegas - de supor que vai ali na "perifa" rapidinho e já desvenda todo o universo de vidas ali dispostas? Bate na porta de um e outro, passa alguns dias numa escolinha "de nada" e - zaz! - consegue diagnosticar uma realidade! Sem ao menos compreendê-la ou pesquisar sobre ela.

Veja o peso dessa palavra, tão repetida no seu programa, tanto quanto nesse texto: realidade. Pergunto eu que realidade, que visão de mundo, que história tem essa sua equipe que deflagra o Brasil de modo tão preconceituoso e superficial? Por que não optaram em falar, sim, claro, dos problemas da periferia, de como os jovens enfrentam o mundo, mas também sobre o porquê de tudo? Ou de, ao menos, mostrar que também há iniciativa ante a pobreza e os diversos abandonos. Há arte, há questionamento, há radio comunitária nessas zonas de inchaço populacional. Há movimento. Há política. O que não há é representação disso. Não há reconhecimento por parte dos "mediadores sociais".

Desculpe-me o sr. por tamanha agressividade, mas só posso concluir que é por motivo de revolta que passo tanto tempo sem assistir à programação da TV. Entretanto, como não importam meus motivos e sim os seus (e da sua equipe), gostaria muito de receber uma resposta.

No aguardo, agradeço!


Atenciosamente,


domingo, 17 de maio de 2009

um padrão de beleza a menos

Ela viu aquele boneco banguela, de fralda branca, camiseta azul e chapéu Panamá, que movia os braços conforme apertavam sua barriga, que sorria largamente e sem parar, mas não gostou. De olhos arregalados, pôs a mãozinha na cabeça, enrolou os cachos curtos, fechou a cara. Parecia pensar muito ao fitá-lo. Fez silêncio por três ou quatro segundos. Levantou as sobrancelhas, respirou e...

- Feio!
- Feio?
(silêncio)
- Uhum.

Layla mantinha-se imóvel e concentrada. E só repetia que Tommy era feio.

Tommy é protagonista dos Rugrats, desenho animado estadunidense que narra o cotidiano de bebês de rostos quadrados e vozes fanhosas que, volta e meia, têm motivos para se sentirem bastante adultos. Primogênito da família (composta por avô, pai, mãe e irmão), ele tem na trama o papel de mediador e, às vezes, de apaziguador das intrigas da prima Angélica - uma mocinha de três ou quatro anos muito temperamental. Na ocasião da estréia de Rugrats nos cinemas, foram lançados vários bonecos temáticos. Eu ganhei uma Angélica vestida com macacão cor-de-rosa e um Tommy "caçador" (de chicote nas mãos e tudo mais).

Por muitos anos os apertei felicianamente (palavra geradora para esse neologismo: Felícia, dos Tiny Toons). Até que chegou a Layla, com a sabedoria de seus dois anos, e os estranhou.

- Titia, feio...

O espanto vagaroso e pensativo da menina me fez avaliar os modelos de beleza que adotamos desde cedo - pelas estéticas da tradição e da indústria cultural, que não são as mesmas, mas se voltam a um semelhante discurso. Tommy é branco e, provavelmente, se tornará loiro quando seus cabelos crescerem. Angélica tem os olhos claros, o nariz empinado e adora cores fortes. Inteligentes, ambos têm idéias adultas que menosprezam todo espectador com mais de três anos. Quanto mais velho você for, aliás, mais você se sente subestimado diante das soluções dos Rugrats para a vida. Isso, cruelmente, os faz bonitos e "fofinhos". Muito mais do que sugere a forma assimétrica de suas faces.

O que passa a valer para suas belezas são o que representam. Tommy é sensível, decidido, carinhoso e paciente, nunca dá pirraças e fala firme com Angélica quando necessário (vez ou outra ela extrapola). A menininha, por sua vez, é insuportável de tão geniosa, mas engraçada nos seus arrependimentos. A turma toda junta (ainda há um vizinho e dois amigos gêmeos) toma decisões com mais precisão que os adultos. Pobres adultos! Carrascos da realidade, os Rugrats são "anjinhos" (conforme a tradução para o produto no Brasil) que nos levam a enxergar beleza no que não é adulto ou maduro. Em suas personalidades, suas crises e seus modos de viver, são perfeitos. E isso abandona a estética clássica, criando sua própria. Daí, não importa se a boca enorme e sem dentes de Tommy parece engolir uma criança (talvez engula melhor um adulto). Não importa também se em suas mãos de boneco há um chicote para açoitar animais da floresta. Nada disso importa, porque eles são, acima de tudo, fofinhos.

Para Layla, que não acompanhou o desenho na TV, nada disso faz sentido. O contrário é que é real. Ou mais plausível. Seu contexto, que é o mesmo da infra-estrutura, o constrói com ternura: de fraldinha, barriga estufada, bochechas rechonchudas e chicote na mão. Quando o vejo, já imagino sua voz, suas atitudes, sua personificação. Se não sei de nada disso, como Layla, ele é mais um boneco assustador guardado no armário.