sábado, 8 de maio de 2010

a ilusão de que o mundo anda bem


O que vou dizer agora poderá me trazer problemas com pessoas que prezo, gosto e admiro muito; pessoas que sofrem ou sofreram o que nunca sofri e, portanto, que falam e escutam de um lugar distante ou diferente do meu; pessoas que têm um valor de resistência e revolução interna enorme que, talvez, nunca conseguirei perceber com tanta profundidade. Mas, como a nossa sociedade está "mais tolerante", partirei do pressuposto de que serei compreendida. Vamos lá!

Na tarde de hoje estava bem contente passando a limpo algumas anotações da semana, feitas nos meus caderninhos de estudo, quando fui surpreendida com uma série de piados indicando para ler a matéria de capa da revista Veja desta próxima semana.

Abre parênteses: Por acaso, fichava uma interessante obra assinada por Raymond Williams que encontrei na biblioteca do IFG (WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007). Havia buscado esse crítico literário inglês tão importante para ver se amenizava as minhas radicalidades políticas ainda irracionais e "retrógradas" ou, melhor dizendo, se entendia um pouco o que há entre a política e a cultura. Enfim, anotei algumas explicações sobre a palavra "consenso", em que ele explica, em linhas gerais, que, lá para meados do século 20, o que tinha sentido de "acordo" e "sentimento conjunto" passa a ser deturpado pela espiral silenciosa do discurso dominante:

"... trata-se de uma palavra de uso difícil hoje, em um espectro que vai desde o sentido positivo de busca de concordância geral, passando pelo sentido de assentimento relativamente passivo ou mesmo INCONSCIENTE (v.) (cf. opinião ortodoxa e saber convencional), até a sugestão de um tipo 'manipulador' de política que procura construir uma ‘maioria silenciosa’ como a base de poder, a partir da qual se podem excluir ou reprimir os movimentos ou as ideias dissidentes" (p. 108).

Fecha parênteses: foi nesse exato momento em que eu terminava de copiar essa citação para o meu fichamento que parei para ler a supramencionada reportagem da Veja. E fiquei um tanto espantada com o que li. Foram entrevistados vários jovens que se dizem bem resolvidos com sua orientação sexual e com as suas famílias, o que fez a revista considerar que estamos presenciando crescer e se desenvolver "a geração da tolerância".

Não fiquei chocada com a orientação sexual das pessoas ali retratadas e nem com o fato de isso ser assumido. Muitíssimo pelo contrário. Isso me dá orgulho. É bom saber que chegamos a um momento individual da convivência em que somos "donos" de nosso próprio corpo e que a pessoa com quem transamos ou deixamos de transar é problema inteiramente nosso. Melhor que isso, a matéria mostra mães e pais "vencidos pelo cansaço" e que deixam de ter vergonha dos filhos, com o passar do tempo. Ótimo. Podemos ser quem somos, quem escolhemos ser e não há mais professor na escola ou tia velha que seja para nos censurar!

Então, por que fiquei chocada? Por que, se sempre tive amigos gays e lésbicas e isso nunca foi constrangedor (logo, também devo fazer parte dessa "geração")? Por que, se já fui rotulada como "sapatão" ou "mal amada" várias vezes por não gostar de passar batom ou pentear os cabelos (logo, também sofri com preconceito)? Por que, se os lugares que mais gostei de dançar na vida foram Loca (em São Paulo) e Terraçus Metropolitan (em Vilhena), ambos “redutos” de “resistência” GLS (logo, devo ser uma S)?

Fiquei chocada porque mais uma vez noto um esforço tremendo por parte de um "veículo" que se diz formador de opinião para camuflar a realidade. E, pior, se usurpando de uma "causa" que, conforme aponta a reportagem, deixou de ser causa para ser, exatamente como explica Williams, leitor de Antônio Gramsci, um consenso. Um consenso no sentido mais difícil e traiçoeiro da política do século 20. Consenso que pode ser resumido, curiosamente, nesta palavra: tolerância.

O problema de afirmar que a tolerância foi estabelecida na sociedade porque a orientação sexual das pessoas é mais respeitada do que no passado (tanto, que foi até "naturalizada", usando palavras da Veja) é que se esquece de outras intolerâncias que ainda não foram resolvidas, como a social e a racial.

Não resolvemos ainda a intolerância ocidental com o povo muçulmano, por exemplo. Nem a intolerância velada (ou nem tanto assim) com o povo mais antigo do mundo, o "africano" (usando aí uma denominação colonialista), ainda hoje exibido nos telejornais como “atrasado” e produtor dos próprios conflitos e das próprias misérias (aliás, o "responsável" direto por "espalhar" o vírus HIV para o restante do mundo).

Não resolvemos sequer nossos problemas internos quando estamos de acordo que "esse bando de vagabundos" tem mesmo que sair da terra, da ocupação, do morro. Lemos, nessa mesma publicação da Editora Abril, que o problema das enchentes em São Paulo é "culpa" de São Pedro e nos conformamos com isso sendo, assim, completamente intolerantes com o desabrigo alheio. "Dificuldade que não exista para mim", pensamos, no nosso âmago. E, quando aquela senhora careca, desdentada e de roupas rasgadas nos aborda dizendo "Ei, me dá moeda!", preferimos olhar para o outro sentido da rua, de forma intolerante e indiferentemente raivosa, a ignorá-la.

Por isso resolvi perder esse tempo do meu sábado precioso (o único dia inteiro, além de quarta e domingo, que tenho para estudar) e manifestar-me sobre a "geração da tolerância". Prega-se um mundo que caminha para a perfeição e que nem mais precisa de "bandeiras de luta". Nem o último rincão da militância precisa mais militar, reclamar, brigar, tentar resolver, reordenar. A ordem já está posta e o último problema do mundo (referente ao poder sobre o próprio corpo) já foi resolvido.

Não há mais necessidades de "grupos", cada um é um indivíduo consciente e pronto para agir. Esse é um discurso que mascara e que me lembra muito o que Herbert Marcuse diz em O fechamento do universo da locução (IN: A ideologia da sociedade industrial. Trad. Zahar. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967) sobre a falta de oportunidade que temos, cada dia mais, de nos assumirmos pouco felizes, infelizes ou insatisfeitos. Na verdade, o que se tem criado é uma ilusão de vida feliz. Ilusão que faz com que nos preocupemos pouco com a coletividade e nos ocupemos mais de nossos próprios prazeres. Prazeres esses que só conseguimos alcançar se reproduzirmos uma ordem de vida que, no fundo, sufoca e continua sendo totalitária.

E pregar a tolerância quando não há é um traço dessa felicidade forçada. Não precisamos mais discutir e avaliar nada, pois já aprendemos com o passado. Podemos, aliás, esquecer o passado. Devemos viver intensamente o presente, tendo domínio do nosso corpo e das nossas escolhas enquanto indivíduos. De mais a mais, seguimos vivendo com a esperança de que "as coisas" só tendem a melhorar.

Nossos pais já nos aceitam. Ou seja, a tradição já foi vencida por nós, jovens das revoluções individuais. Agora podemos gozar felizes, tranqüilos, da forma como nos convier. Se não há mais nada para questionar, não há necessidade mais de nos preocuparmos com a coletividade. O que queremos da vida é isso e é isso o que a reportagem da Veja sugere que devemos desejar: alegria, sobretudo. Vamos nos divertir porque já mudamos o mundo, já resolvemos as pendências do mundo. E o Congo que se vire com seus conflitos internos! E o trabalho escravo que vá ser escravo bem longe de nós, jovens tolerantes! E o Haiti que se (re)constitua com aquela ajuda humanitária que lhe enviamos, depois de um show beneficente com GOG na Esplanada!

Ora, o fato de hoje em dia respeitarmos mais (aliás, de nos ser indiferente) a orientação sexual das pessoas não quer dizer que somos plenamente tolerantes ou sequer tolerantes. Portanto, na minha visão, a revista Veja prega mais uma peça em seus leitores.

É muito redundante dizer que essa publicação é um bom exemplo de produto oriundo da formação pseudocultural e pseudoconsciente? E aos meus amigos que "tuitaram" essa matéria como um sinal comemorativo, minhas desculpas! Posso estar sendo preconceituosa, mesmo não querendo ser. Mas, não posso concordar com isso.